São Paulo, sexta, 20 de março de 1998

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OPINIÃO
Monólogo a dois

JACOB PINHEIRO GOLDBERG
Quem matou Jesus? Quem matou 6 milhões de judeus? O aparente diálogo que se estabeleceu após a tragédia da "shoah" (e não Holocausto), na Segunda Guerra Mundial, entre a igreja e a sinagoga nunca atingiu a autenticidade e a coerência indispensáveis.
Medo, culpa, sentimentos recalcados de amor e ódio se embaraçam numa teia complexa, em que a franqueza não encontra lugar. Alguns pontos demandam mais a reflexão teológica e psicológica do que o "modus vivendi" político.
É preciso mergulhar na origem das contradições e do afastamento, até as teratológicas implicações. De um lado, a saga de Jesus, Yeoshua Ben Yossef -um camponês judeu do Mediterrâneo, na definição de John Dominic Crossan-, relatada numa linguagem epopéica e passional pelos apóstolos, companheiros judeus.
A mensagem, renovada e transmitida pela ambiguidade do gênio político de Saulo de Tarso, que conquista o imaginário e o simbólico como Paulo, culmina na conquista do império que se afirma em Roma. "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" - as palavras na cruz (suplício do dominador romano) invocam o enigma: José, a identidade paterna, o abandono diante da repressão, a humilhação imposta.
Ou se faz a inserção (que nem cristãos nem judeus admitem) de Jesus no cenáculo existencial de sua história ou a "judeufobia" do deicídio evolui, independente de declarações ou "mea culpa".
O papa Pio 12 foi omisso diante do crime nazista, como Hochnut denuncia em "O Vigário"? Sim. Mas não foi pessoal sua atitude. Decorreu de dois milênios de síndrome de Caim (segundo o psicanalista Szondi). A escola de Pilatos se reproduz. Khalil Gibran escreveu sobre a necessária reconciliação entre Cristo e Jesus. Joseph Klausner, da Universidade Hebraica, afirmou que Jesus foi o mais apaixonado autor das parábolas mais sublimes do judaísmo.
A transformação do martírio de Jesus, por parte de Roma, na justificação do anti-semitismo só pode ser compreendida numa releitura horizontal dos quatro Evangelhos, à luz dos manuscritos do mar Morto, constatando discrepâncias e não aparentes convergências.
Que o ovo da serpente tenha germinado na Alemanha cristã foi reportado por Gallagher. O sacrifício de Abel não demanda desculpas. Tudo foi imperdoável.
Só a graça divina e a inteligência antropológica podem prometer um silencioso reencontro de irmãos, sobre a dor cósmica. Diante de Auschwitz e do Calvário, a introspecção convida a que os companheiros de ascese implorem a redenção. Nem monólogo nem diálogo. A prece.


Jacob Pinheiro Goldberg, 64, advogado e assistente social, é doutor em psicologia pela Universidade Mackenzie e autor de "Historic Invention and Psychological Understanding of Jesus" (1978). E-mail: goldberg@uol.com.br



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