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JUSTIÇA
Decisão favorável à progressão de pena de sequestradores de publicitário não tem respaldo em manifestações do STF
Supremo se opõe à juíza do caso Olivetto
DA REPORTAGEM LOCAL
O Supremo Tribunal Federal
(STF) -última instância da Justiça brasileira- nunca proferiu nenhuma decisão que dê respaldo à
posição defendida pela juíza Kenarik Boujikian Felippe, da 19ª
Vara Criminal de São Paulo, que
julgou os sequestradores do publicitário Washington Olivetto.
No último dia 15, Kenarik condenou os acusados pelo sequestro
a 16 anos de prisão com a possibilidade de progressão de regime
após dois anos e oito meses de cadeia (um sexto da pena).
Para permitir a progressão, a
juíza alegou ser inconstitucional a
previsão legal de manter os acusados atrás das grades por todo o
tempo previsto na sentença.
Se mantida a decisão da juíza, os
sequestradores poderão pedir para passar o dia fora da cadeia já no
segundo semestre de 2004.
A previsão legal que ela contesta
é a da Lei de Crimes Hediondos,
publicada há 12 anos. Segundo a
lei, a pena para os crimes hediondos -entre os quais está incluído
o sequestro- deve ser cumprida
inteira atrás das grades.
Isso [a impossibilidade de progressão" "fere o direito fundamental da individualização da pena (...) estabelecido no artigo 5º da
Carta Magna", escreveu a juíza,
que não quer dar entrevistas.
Ontem, a pedido da Folha, o
STF fez uma pesquisa em seu arquivo de decisões e afirmou que a
jurisprudência é pacífica: desde
que a Lei de Crimes Hediondos
foi promulgada, houve aproximadamente 150 pedidos de habeas
corpus em que o tribunal foi provocado a ser manifestar sobre sua
constitucionalidade. Nos 130
acórdãos já publicados, a decisão
foi sempre por manter os réus
presos, sustentando a constitucionalidade da legislação.
Nem sempre, porém, as decisões foram unânimes. Em alguns
desses casos houve ministros que
concordaram com a alegação de
inconstitucionalidade, como já o
fez o hoje presidente da Casa, ministro Marco Aurélio de Mello.
Foi sempre voto vencido.
A alegação de inconstitucionalidade tem base no inciso 46 do artigo 5º da Constituição Federal,
que prevê que a lei regulará a individualização das penas.
"Pela tese da juíza, a inconstitucionalidade está no fato de a lei
[de crimes hediondos" impedir o
julgador de tratar da progressão
de regime e, assim, retirar dele um
instrumento de individualização
de pena", diz o criminalista Alberto Toron, 42. "Já defendi esse ponto de vista no passado. Hoje entendo que o juiz tem possibilidade
de lançar mão de outros elementos para individualizar a pena."
É isso o que tem entendido o
STF desde 1992, quando o assunto
chegou pela primeira vez a última
instância. Em uma decisão de
1993, por exemplo, dizia o então
ministro Francisco Rezek: "Não
há inconstitucionalidade em semelhante rigor legal [o cumprimento integral da pena em regime fechado", visto que o princípio
da individualização da pena não
se ofende na impossibilidade de
ser progressivo o regime. De todo
modo, tem o juiz como dar trato
individual à fixação da pena, sobretudo no que se refere à intensidade da mesma [anos de cadeia"."
O ministro Marco Aurélio e a
juíza Kenarik, porém, não estão
sozinhos em suas posições. Existe
na doutrina uma série de criminalistas que sustentam a inconstitucionalidade da Lei de Crimes Hediondos. Cerca de 250 deles -a
maioria de primeira instância-
integram a Associação dos Juízes
para a Democracia, da qual Kenarik foi presidente até 2001.
"A definição do regime é parte
da individualização da pena, que
deve ser fixada depois de considerados aspectos do passado do
acusado, das circunstâncias do
crime etc. Se o juiz não tiver a possibilidade de escolher o regime, a
previsão legal de individualização
de pena é ferida", diz Ary Casagrande, 67, presidente da associação e juiz do Tacrim-SP (Tribunal
de Alçada Criminal).
Para Casagrande, a possibilidade de ir para o regime semi-aberto
não é benefício, mas um direito
que foi retirado de alguns presos
pela Lei de Crimes Hediondos.
A esperança de progressão, dizem, ajuda a controlar as cadeias,
faz com que se trate de forma distinta pessoas diferentes e recupera o papel ressocializador da pena. "O objetivo da pena é punir,
mas também recuperar. O preso
precisa ter a perspectiva de melhorar sua situação para que cumpra regras", diz o juiz do Tacrim.
"É um mito considerar que a severidade da lei possa dissuadir alguém do crime. Se fosse assim, o
número de sequestros não teria
subido desde 1990 [quando foi
promulgada a Lei de Crimes Hediondos"", continua.
O advogado dos sequestradores
de Olivetto, Iberê Bandeira de
Mello, admite que as decisões do
STF são favoráveis à constitucionalidade da lei, mas não acha que
a causa já esteja perdida. "São decisões isoladas, não existe nenhuma súmula do STF sobre isso."
Bandeira de Mello recorreu ontem da sentença da juíza ao Tribunal de Justiça. O promotor
Marco Antonio Ferreira Lima deve entrar com seu recurso segunda. É o começo de uma briga judicial que deve demorar anos.
Em discussão estará, além da
constitucionalidade da Lei de Crimes Hediondos, a existência ou
não dos crimes de quadrilha e de
tortura, a possibilidade de a motivação política ter reduzido a base
da pena dos sequestradores e possibilidade de suas condutas serem
agravantes ou atenuantes de suas
penas (veja quadro).
Em breves conversas com pessoas do meio jurídico é possível
notar que a controvérsia é grande.
"Com crime único não se pode falar em quadrilha", diz Alberto Toron, professor de direito penal da
PUC-SP. "A juíza se equivocou. A
quadrilha ocorre sempre que
mais de três pessoas se reúnem
com objetivo ilícito", rebate o presidente da OAB-SP, Carlos Aidar.
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