São Paulo, sábado, 20 de julho de 2002

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JUSTIÇA

Decisão favorável à progressão de pena de sequestradores de publicitário não tem respaldo em manifestações do STF

Supremo se opõe à juíza do caso Olivetto

DA REPORTAGEM LOCAL

O Supremo Tribunal Federal (STF) -última instância da Justiça brasileira- nunca proferiu nenhuma decisão que dê respaldo à posição defendida pela juíza Kenarik Boujikian Felippe, da 19ª Vara Criminal de São Paulo, que julgou os sequestradores do publicitário Washington Olivetto.
No último dia 15, Kenarik condenou os acusados pelo sequestro a 16 anos de prisão com a possibilidade de progressão de regime após dois anos e oito meses de cadeia (um sexto da pena).
Para permitir a progressão, a juíza alegou ser inconstitucional a previsão legal de manter os acusados atrás das grades por todo o tempo previsto na sentença.
Se mantida a decisão da juíza, os sequestradores poderão pedir para passar o dia fora da cadeia já no segundo semestre de 2004.
A previsão legal que ela contesta é a da Lei de Crimes Hediondos, publicada há 12 anos. Segundo a lei, a pena para os crimes hediondos -entre os quais está incluído o sequestro- deve ser cumprida inteira atrás das grades.
Isso [a impossibilidade de progressão" "fere o direito fundamental da individualização da pena (...) estabelecido no artigo 5º da Carta Magna", escreveu a juíza, que não quer dar entrevistas.
Ontem, a pedido da Folha, o STF fez uma pesquisa em seu arquivo de decisões e afirmou que a jurisprudência é pacífica: desde que a Lei de Crimes Hediondos foi promulgada, houve aproximadamente 150 pedidos de habeas corpus em que o tribunal foi provocado a ser manifestar sobre sua constitucionalidade. Nos 130 acórdãos já publicados, a decisão foi sempre por manter os réus presos, sustentando a constitucionalidade da legislação.
Nem sempre, porém, as decisões foram unânimes. Em alguns desses casos houve ministros que concordaram com a alegação de inconstitucionalidade, como já o fez o hoje presidente da Casa, ministro Marco Aurélio de Mello. Foi sempre voto vencido.
A alegação de inconstitucionalidade tem base no inciso 46 do artigo 5º da Constituição Federal, que prevê que a lei regulará a individualização das penas.
"Pela tese da juíza, a inconstitucionalidade está no fato de a lei [de crimes hediondos" impedir o julgador de tratar da progressão de regime e, assim, retirar dele um instrumento de individualização de pena", diz o criminalista Alberto Toron, 42. "Já defendi esse ponto de vista no passado. Hoje entendo que o juiz tem possibilidade de lançar mão de outros elementos para individualizar a pena."
É isso o que tem entendido o STF desde 1992, quando o assunto chegou pela primeira vez a última instância. Em uma decisão de 1993, por exemplo, dizia o então ministro Francisco Rezek: "Não há inconstitucionalidade em semelhante rigor legal [o cumprimento integral da pena em regime fechado", visto que o princípio da individualização da pena não se ofende na impossibilidade de ser progressivo o regime. De todo modo, tem o juiz como dar trato individual à fixação da pena, sobretudo no que se refere à intensidade da mesma [anos de cadeia"."
O ministro Marco Aurélio e a juíza Kenarik, porém, não estão sozinhos em suas posições. Existe na doutrina uma série de criminalistas que sustentam a inconstitucionalidade da Lei de Crimes Hediondos. Cerca de 250 deles -a maioria de primeira instância- integram a Associação dos Juízes para a Democracia, da qual Kenarik foi presidente até 2001.
"A definição do regime é parte da individualização da pena, que deve ser fixada depois de considerados aspectos do passado do acusado, das circunstâncias do crime etc. Se o juiz não tiver a possibilidade de escolher o regime, a previsão legal de individualização de pena é ferida", diz Ary Casagrande, 67, presidente da associação e juiz do Tacrim-SP (Tribunal de Alçada Criminal).
Para Casagrande, a possibilidade de ir para o regime semi-aberto não é benefício, mas um direito que foi retirado de alguns presos pela Lei de Crimes Hediondos.
A esperança de progressão, dizem, ajuda a controlar as cadeias, faz com que se trate de forma distinta pessoas diferentes e recupera o papel ressocializador da pena. "O objetivo da pena é punir, mas também recuperar. O preso precisa ter a perspectiva de melhorar sua situação para que cumpra regras", diz o juiz do Tacrim.
"É um mito considerar que a severidade da lei possa dissuadir alguém do crime. Se fosse assim, o número de sequestros não teria subido desde 1990 [quando foi promulgada a Lei de Crimes Hediondos"", continua.
O advogado dos sequestradores de Olivetto, Iberê Bandeira de Mello, admite que as decisões do STF são favoráveis à constitucionalidade da lei, mas não acha que a causa já esteja perdida. "São decisões isoladas, não existe nenhuma súmula do STF sobre isso."
Bandeira de Mello recorreu ontem da sentença da juíza ao Tribunal de Justiça. O promotor Marco Antonio Ferreira Lima deve entrar com seu recurso segunda. É o começo de uma briga judicial que deve demorar anos.
Em discussão estará, além da constitucionalidade da Lei de Crimes Hediondos, a existência ou não dos crimes de quadrilha e de tortura, a possibilidade de a motivação política ter reduzido a base da pena dos sequestradores e possibilidade de suas condutas serem agravantes ou atenuantes de suas penas (veja quadro).
Em breves conversas com pessoas do meio jurídico é possível notar que a controvérsia é grande. "Com crime único não se pode falar em quadrilha", diz Alberto Toron, professor de direito penal da PUC-SP. "A juíza se equivocou. A quadrilha ocorre sempre que mais de três pessoas se reúnem com objetivo ilícito", rebate o presidente da OAB-SP, Carlos Aidar.



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