São Paulo, terça-feira, 20 de agosto de 2002

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MARILENE FELINTO

Escrever no país de Tim Lopes e Graciliano Ramos

Escrevo hoje com uma faca no peito, no país onde se esquartejam jornalistas e aprisionam escritores em calabouços: era assim em 1936, quando o poder perverso prendeu Graciliano Ramos por crime de pensamento. É assim hoje. O crime organizado copia o poder: impossível imaginar a agonia de Tim Lopes, o jornalista assassinado pela horda do tráfico no morro carioca.
Preciso arranjar umas palavras aqui em defesa da liberdade de expressão, montar um raciocínio desses de advogado, na linguagem da jurisprudência, novelos de frases, palavras entrelaçadas para armadilhas de todo o tipo.
Não resta senão entregar o papel em branco: fartem-se no banquete absurdo. Admitir como única via possível de liberdade e dignidade a consciência do absurdo. Sair.
Suicídio. "Nós nos suicidamos em cada palavra que pronunciamos; e no entanto não podemos viver sem falar. (...) A vida é um problema de linguagem", disse um crítico sobre um texto de Clarice Lispector. Certos escritores se suicidam mais do que outros, os que não têm compromisso nenhum, senão com a palavra.
"A palavra é fruto da palavra", dizia Lispector. "A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo."
Como seu narrador suicida em "A Hora da Estrela", sei o que pensam de mim: "Não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim."
Como a classe baixa nunca vem a mim, é a ela que eu gostaria de ir, na luta inglória, no trajeto percorrido em vão.
Mas os donos do país não deixam, estão a postos com suas armadilhas de poder.
Escrevo hoje com uma faca no peito, mas não tenho medo. "Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e seu desespero", como diz o narrador. O suicídio, ainda que verbal, é a pior das solidões.

E-mail - mfelinto@uol.com.br


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