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Comunidade solidária e a fome dos sertanejos
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
"Se for preciso, varro a bala
toda essa região", o comandante do destacamento de soldados sentenciou, em 1963,
contra os flagelados da seca
que ameaçavam invadir o único armazém de alimentos do
município de Milagres, no sertão da Bahia. O filme "Os Fuzis" (1964), de Ruy Guerra, é
que recuperou a cena.
Hoje, passados mais de 30
anos, a cena se repete na sua
mais cruel realidade. Quinta-feira passada (16/4), no município sertanejo de Afogados
da Ingazeira, no meio-norte de
Pernambuco, cerca de 500 flagelados saquearam o depósito
de alimentos do programa Comunidade Solidária.
Resultado do saque: 17,5 toneladas de alimentos, divididos em 200 fardos de arroz,
600 de macarrão, 70 de farinha de mandioca, 160 de farinha de milho e 50 de feijão.
Os alimentos são fornecidos
pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), que
mandou chamar o Exército
-40 soldados já estão lá-
para vigiar as 382,5 toneladas
de alimentos que restaram do
saque e que se destinavam à
merenda escolar.
Também em 63, o destacamento de soldados tinha por
missão "proteger" o armazém
da matilha de famintos. A
missão sem sentido de tirar a
comida de quem tem fome.
A Fetape (Federação dos
Trabalhadores na Agricultura
de Pernambuco) afirma que
saques como o de Afogados da
Ingazeira são a única alternativa de sobrevivência para os
pequenos agricultores que
abandonaram suas propriedades por causa da seca.
Há no mínimo uma incongruência no episódio de Afogados da Ingazeira: para que servem os alimentos do Comunidade Solidária afinal? Que burocracia é essa que separa a fome em gavetas de "merenda
escolar"? O Comunidade Solidária, programa criado pelo
governo federal em 1995, teria
exatamente o objetivo de "articular a sociedade brasileira
no combate à pobreza e à exclusão social".
Não bastasse isso, uma tal
"Associação de Apoio ao Programa Comunidade Solidária", com página na Internet,
se define como "originária da
união espontânea de cidadãos
brasileiros, comprometidos
com as ações sociais voltadas
ao combate à fome".
Mas, então, como é que os famintos do sertão vão assaltar
justo os depósitos de comida
da "associação" que deveria
alimentá-los? Só se "comunidade solidária" não passar de
nome de fachada, como todas
essas legiões de assistência cuja direção fica relegada às primeiras-damas do país (basta
lembrar o caso grave de corrupção, irresponsabilidade e
cafonice de Rosane Collor à
frente de uma delas).
Nos governos brasileiros, repete-se esse cacoete de relegar
as tarefas da assistência social
-o tratamento da pobreza extrema, da ignorância e da desigualdade social- às mulheres dos presidentes, como se
fosse serviço secundário, a ser
realizado pelas donas-de-casa
em seu tempo ocioso.
As secas existem no Nordeste
desde o século 16. Só não vê
quem não quer. Ou a comunidade é, na verdade, mais cega
do que solidária.
E-mail: mfelinto@uol.com.br
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