São Paulo, terça, 21 de abril de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Comunidade solidária e a fome dos sertanejos

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

"Se for preciso, varro a bala toda essa região", o comandante do destacamento de soldados sentenciou, em 1963, contra os flagelados da seca que ameaçavam invadir o único armazém de alimentos do município de Milagres, no sertão da Bahia. O filme "Os Fuzis" (1964), de Ruy Guerra, é que recuperou a cena.
Hoje, passados mais de 30 anos, a cena se repete na sua mais cruel realidade. Quinta-feira passada (16/4), no município sertanejo de Afogados da Ingazeira, no meio-norte de Pernambuco, cerca de 500 flagelados saquearam o depósito de alimentos do programa Comunidade Solidária.
Resultado do saque: 17,5 toneladas de alimentos, divididos em 200 fardos de arroz, 600 de macarrão, 70 de farinha de mandioca, 160 de farinha de milho e 50 de feijão.
Os alimentos são fornecidos pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), que mandou chamar o Exército -40 soldados já estão lá- para vigiar as 382,5 toneladas de alimentos que restaram do saque e que se destinavam à merenda escolar.
Também em 63, o destacamento de soldados tinha por missão "proteger" o armazém da matilha de famintos. A missão sem sentido de tirar a comida de quem tem fome.
A Fetape (Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco) afirma que saques como o de Afogados da Ingazeira são a única alternativa de sobrevivência para os pequenos agricultores que abandonaram suas propriedades por causa da seca.
Há no mínimo uma incongruência no episódio de Afogados da Ingazeira: para que servem os alimentos do Comunidade Solidária afinal? Que burocracia é essa que separa a fome em gavetas de "merenda escolar"? O Comunidade Solidária, programa criado pelo governo federal em 1995, teria exatamente o objetivo de "articular a sociedade brasileira no combate à pobreza e à exclusão social".
Não bastasse isso, uma tal "Associação de Apoio ao Programa Comunidade Solidária", com página na Internet, se define como "originária da união espontânea de cidadãos brasileiros, comprometidos com as ações sociais voltadas ao combate à fome".
Mas, então, como é que os famintos do sertão vão assaltar justo os depósitos de comida da "associação" que deveria alimentá-los? Só se "comunidade solidária" não passar de nome de fachada, como todas essas legiões de assistência cuja direção fica relegada às primeiras-damas do país (basta lembrar o caso grave de corrupção, irresponsabilidade e cafonice de Rosane Collor à frente de uma delas).
Nos governos brasileiros, repete-se esse cacoete de relegar as tarefas da assistência social -o tratamento da pobreza extrema, da ignorância e da desigualdade social- às mulheres dos presidentes, como se fosse serviço secundário, a ser realizado pelas donas-de-casa em seu tempo ocioso.
As secas existem no Nordeste desde o século 16. Só não vê quem não quer. Ou a comunidade é, na verdade, mais cega do que solidária.

E-mail: mfelinto@uol.com.br



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.