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MOACYR SCLIAR
Abandono afetivo
O que eles não dizem é que também fui vítima de abandono afetivo. Sua mãe só queria cuidar de você
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Dois projetos no Congresso querem punir pais pelo "abandono afetivo" dos filhos, cobrando indenização por dano
moral ou tornando o abandono crime.
Cotidiano, 20/09/2009
ELE CHEGOU pontualmente na
hora marcada, quatro da tarde. Tocou a campainha do
apartamento. Quem lhe abriu não
foi a ex-mulher -conforme combinado, ela tinha saído -mas sim o filho, um garoto de dez anos. Fazia
mais de um ano que os dois não se
viam, e a reação inicial de ambos foi
de surpresa, constrangida surpresa.
O homem tinha diante de si um garoto que crescera muito, que mudara; o jovem via um homem cuja fisionomia não raro precisava fazer força
para lembrar.
O homem entrou, e, com brutal
franqueza, foi logo dizendo: estava
ali por causa de uma ordem do juiz
-se não viesse, a ex-mulher faria
com que pagasse uma elevada indenização, coisa que ele, lutando com
dificuldades financeiras, não teria
como fazer. Só estou aqui porque me
acusam de abandono afetivo, disse,
amargo. Ficou calado um instante e
depois perguntou ao menino:
-Você sabe o que é isso? Abandono afetivo?
O menino abanou silenciosamente a cabeça: não, não sabia o que era
abandono afetivo. O pai então explicou: abandono afetivo queria dizer
que ele não se preocupava muito
com o filho, que não lhe dava carinho. Nova pausa, e prosseguiu:
-Mas o que eles não dizem é que
também fui vítima de abandono afetivo. Sua mãe simplesmente me ignorava. Ela só queria cuidar de você,
só você lhe importava. Isso foi me
dando uma raiva que você não imagina. No fim do nosso casamento eu
nem aparecia em casa. Saía do escritório, ia para um bar, ficava bebendo. Sozinho. Completamente sozinho. Ela achava que eu tinha outras
mulheres, mas não, eu não tinha
ninguém, eu estava abandonado. E
porque estava abandonado, abandonei a casa. Abandonei você.
O menino ouvia sem dizer nada. O
pai prosseguiu:
-Mas sabe em quem eu pensava,
quando estava sozinho bebendo?
Pensava em você. Ficava lembrando
coisas. Lembrava de você ainda bebê, lembrava de seu sorriso. Das primeiras palavras que você disse. Dos
primeiros passos que deu. Dos primeiros brinquedos que lhe comprei.
De nossos passeios de bicicleta. Você se recorda disso?
Não, o filho não recordava.
-Pois é, eu lhe comprei uma bicicleta, e nós íamos para o parque. Eu
era um bom ciclista, você sabia disso
e queria apostar corrida. Eu concordava, mas sempre deixava você chegar na frente; eu ficava para trás. Lá
pelas tantas notei que você, na verdade, era mais rápido do que eu imaginara; agora era eu quem tinha de
fazer força para lhe acompanhar. E
aí fiquei todo orgulhoso. Pensei: um
dia ele vai seguir seu caminho, sozinho; mesmo que ele me deixe, terei
cumprido minha missão.
Deixou escapar um fundo suspiro,
e de novo ficou em silêncio. Ao cabo
de algum tempo olhou o relógio:
-Já se passou meia hora. Esse é o
tempo mínimo da visita. Eu poderia
ir embora. Eu queria ir embora. Mas
agora mudei de ideia. Posso ficar
com você, meu filho? Posso?
As lágrimas lhe corriam pelo rosto. E o menino então ficou sabendo
o que é abandono afetivo.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.
moacyr.scliar@uol.com.br
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