São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

INTERNET

Para estudiosos, os "blogs" são forma de resistência ao isolamento e à falta de identidade típicos da sociedade urbana

Modernidade exige exposição, diz analista

DA REPORTAGEM LOCAL

"Escrevo [no "blog"" porque a Cris leu e falou que eu a fiz sorrir quando ela estava de mau humor. Porque o Diogo disse que quase chorou quando leu sobre meu pai e meus irmãos. Escrevo porque quero divertir as pessoas e emocioná-las também", escreve Ione em um "post" -nome dado às mensagens enviadas aos "blogs".
Na necessidade de "divertir e emocionar" de Ione está, na opinião de alguns estudiosos das relações humanas, a explicação para a explosão dos "blogs".
"Essa necessidade de se contar ao outro é uma característica da modernidade e de suas grandes cidades", diz o psicanalista Contardo Calligaris, colunista da Folha e autor de "Crônicas do Individualismo Cotidiano".
"Nos centros urbanos, nossa identidade social depende do olhar dos outros, da forma como eles nos percebem e nos reconhecem. Não importa onde nascemos nem em que família. Então, precisamos atrair a atenção do outro para garantir a nossa identidade. Por isso vamos ao cabeleireiro, fazemos tatuagens, usamos roupas bonitas e contamos nossas vidas em "blogs'", continua ele.
Para o psicanalista, porém, a "aparente autenticidade" empregada aos "blogs" -alguns com até mil visitas diárias- faz deles instrumentos mais fiéis de interação na modernidade do que a visita ao cabeleireiro, por exemplo. Pois a espontaneidade, diz, é um dos ideais perseguidos nessa era.
"Eles [os "blogs"" são escritos para carregar a marca da autenticidade, da ausência de máscara. E, na modernidade, quanto mais somos capazes de mostrar nossas vísceras, mais somos reconhecidos como sujeitos", conclui.
Consenso não há. Muitos acham enriquecedora a experiência on-line. Outros vêem por trás dela, predominantemente, a demonstração da necessidade de uma terapia real. Mas classificar os "blogs" como forma de resistência ao isolamento e à falta de identidade típicos das urbes parece ser a visão mais recorrente entre as pessoas que se dedicam a estudar as relações interpessoais.
"As pessoas têm prazer em falar delas mesmas. Se não puderem falar delas por uma semana, ficam sem assunto. Como a paranóia urbana do tempo e da insegurança as afastou, elas procuram um novo canal", afirma o psicoterapeuta José Carlos Zeppellini, que narra um caso de um paciente que comprou um gravador para falar com ele mesmo.

Nostalgia do exibicionismo
"Eu sou extremamente vaidoso. Quando as pessoas escrevem elogiando meu "blog", fico muito satisfeito", diz Miguel, 23.
A exposição de Miguel é, na prática, o que os especialistas definem na teoria como uma espécie de nostalgia do exibicionismo.
"Todos têm o impulso de mostrar sua intimidade, pois o bebê cresce se expondo, sendo exposto e sendo comentado por todos", diz o psicanalista Luiz Tenório Lima, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
"Então, vivemos uma certa nostalgia desse exibicionismo, o que entra em choque com a nossa necessidade de privacidade urbana. Os velhos diários também eram escritos para que alguém lesse, mas aí havia uma ameaça real à privacidade. A internet resolveu essa contradição, pois a pessoa se expõe de forma calculada -o quanto quiser e sem se responsabilizar pela presença do outro."
Por um lado, a "exposição calculada" -e eventualmente anônima- dá mais liberdade ao autor, acentuando a catarse e fazendo dos "blogs" verdadeiros "divãs on-line", diz Zeppellini. Por outro, permite que se acredite na intimidade sem que ela de fato exista, na visão do sociólogo Laymert Garcia dos Santos, da Unicamp.
A tese de Zeppellini encontra respaldo no estudo do francês Philippe Lejeune, professor de literatura da Universidade de Paris.
Publicado no começo deste ano, o estudo -o mais amplo até agora sobre o recente fenômeno dos "blogs" (eles surgiram em 1999 nos EUA)- afirma que a maioria dos "blogueiros" franceses fizeram suas páginas logo após um momento de forte depressão, para "botar o lixo para fora". Viram seus problemas desestigmatizados ao perceber que casos semelhantes ocorriam com os outros.
"Eu faço meu "blog" para falar o que eu quero. Se alguém quiser ler, ótimo. Se não quiser, não tem problema", diz o estudante de cinema Frederico, 18.
Falar para alguém sem rosto, sem que importe quem leia, evidencia, para o psicanalista Jorge Forbes, que a busca de identidade está centrada não na comunicação com o outro, mas na interação com a própria língua.
"A passagem da industrialização para a globalização destruiu os ideais comuns, e o mundo ficou "desbussolado". Na euforia depressiva, as pessoas sentem necessidade de escrever -ou seja, firmar um novo contrato com a língua, o mais forte instrumento de identificação do ser humano como humano. E quando o ser humano se reinventa, isso, como toda a invenção, só faz sentido, só existe, se é conhecido pelo outro, independentemente de quem seja esse outro."


Onde criar um "blog": com instruções em português (weblogger.com.br); em inglês (blogger.com.br; xanga.com; citizenx.com; opendiary.com)



Texto Anterior: Blog: Diários são a nova mania dos internautas
Próximo Texto: No real, Erika é ansiosa; Miguel, bem menos sério
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.