São Paulo, quinta-feira, 21 de novembro de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

Mel e amendoim também morrem de saudade

Neste espaço, já tratei mais de uma vez da importância de saber consultar dicionários. Note, por favor, que não me refiro à mais do que óbvia necessidade de ter ou criar o hábito de consultá-los; refiro-me a saber consultá-los, o que implica conhecer os sinais e abreviaturas (devidamente explicados nas primeiras páginas da obra), ter paciência para ler todo o corpo do verbete, procurar o que o dicionário manda procurar (os parônimos, por exemplo) etc.
Uma das dúvidas mais comuns de quem consulta dicionários reside no emprego do bendito hífen, o que, como se sabe, em muitos casos ainda é questão mal resolvida em nossa língua. O "Formulário Ortográfico Oficial", que, teoricamente, regulamenta a questão, parece não deixar dúvida neste ponto: "Deve-se empregar o hífen (...) nas palavras compostas em que os elementos, com a sua acentuação própria, não conservam, considerados isoladamente, a sua significação, mas o conjunto constitui uma unidade semântica". Em seguida, arrolam-se alguns exemplos, entre os quais aparece "pé-de-meia" ("mealheiro", "pecúlio").
A observação que está nos parênteses (que não é minha, é do próprio "Formulário") talvez tenha sido feita para que não restem dúvidas sobre o que se acabou de afirmar: "pé de meia" é uma coisa; "pé-de-meia" é outra, bem diferente. O hífen (dois, no caso) é empregado justamente para indicar que, considerados isoladamente, os elementos formadores desse composto não conservam sua significação.
Bem, e onde entram os dicionários nessa história? Imagine que, "passeando" por um dicionário, alguém veja o verbete "pé-de-moleque", mas não se dê ao trabalho de ler o que lá se diz. Pode achar que "pé-de-moleque" se escreve sempre com hífen. Uma simples e rápida leitura basta para ver que "pé-de-moleque" não é o pé de um moleque, de uma criança; é um doce, feito com amendoim, mel ou açúcar etc.
O leitor talvez ache isso óbvio, mas, a julgar por um título publicado na semana passada por um dos nossos jornais, pode-se chegar à conclusão de que nem tudo é tão óbvio assim. O título era este: "Agrado retrô para pés-de-moleque matarem a saudade". Que entende o leitor disso? Só se pode entender que mel e amendoim também morrem de saudade.
Sabe Deus que mistério dos mistérios fez o redator optar pela grafia "pés-de-moleque" para tratar de tênis desenhados à semelhança dos que se usavam nos anos 70 e 80. Terá ocorrido um dos tais casos em que não se passa de uma ultra-rápida batida de olhos no verbete e se conclui que aquela é a grafia? Sabe Deus!
Não se consultam dicionários apressadamente; o resultado pode ser muito ruim. Não custa lembrar, mais uma vez, que um menino mal educado, por exemplo, é bem diferente de um menino mal-educado. Entendeu, não? Em "menino mal educado", julga-se o processo de educação de que o menino é alvo. Em "menino mal-educado", temos o adjetivo composto "mal-educado", cujos elementos não podem ser vistos isoladamente, mas sob a unidade semântica que compõem. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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