São Paulo, quinta-feira, 22 de fevereiro de 2001

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PASQUALE CIPRO NETO

"É gente que jaz"

No último programa da inteligente turma do Casseta & Planeta, foi exibido um quadro que terminava com esta frase, impressa na tela: "É gente que jaz". O quadro satirizava uma peça publicitária de instituição financeira já extinta.
Pouco antes da frase, um ator meteu-se num féretro. Féretro? Sim, é féretro mesmo, sinônimo de "caixão", "esquife", "ataúde", e não de "cortejo fúnebre", como muita gente pensa.
Bem, "jaz" é a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo "jazer". Por ser comum em lajes tumulares, essa forma verbal e o próprio verbo "jazer" são quase sempre associados à idéia de morte, o que faz muita gente acreditar que "jazer" seja sinônimo de "morrer".
É claro que o pessoal do Casseta não tem nada com isso, mas é inegável que a cena do ator metendo-se no esquife reforça a crença.
"Jazer" não é propriamente sinônimo de "morrer". Não faria sentido trocar "jaz" por "morre" em frases como "Aqui jaz Fulano de Tal". Entre outros significados, "jazer" tem o de "estar em repouso", "estar morto ou como morto", "estar sepultado".
Curiosa e paradoxalmente, os dicionários registram para "jazer" o significado de "viver". O "Aurélio" dá este exemplo, de Teixeira de Pascoais: "A infância não morre. O anjo que somos, nos primeiros anos, jaz, como enterrado, em nossa memória".
Também é comum que se pense que esse verbo seja defectivo, isto é, de conjugação incompleta. Não é. E não se deve ligar sua conjugação à de "fazer". O presente do indicativo é "jazo, jazes, jaz, jazemos...". O pretérito perfeito é "jazi, jazeste, jazeu...". A suposição de que o verbo seja defectivo é tão forte que o dicionário "Aurélio" chega a fazer esta observação: "Conjuga-se em todas as formas".
Por falar em "jazer", terá essa palavra algo a ver com "jazida"? É claro que sim. O que é uma jazida de minério? Nada mais do que o "depósito natural de uma ou mais substâncias úteis, inclusive os combustíveis naturais", como define o "Aurélio", que informa que esse uso é mais comum no Brasil. Em Portugal, usa-se "jazimento" ou "jazigo". Esta, entre nós, é mais usada como sinônimo de "sepultura".
O leitor possivelmente achará esta coluna mais adequada ao Dia de Finados do que a uma quinta-feira pré-carnavalesca. Pois talvez seja justamente essa natural dificuldade de lidar com temas fúnebres a razão de tanta confusão com o bendito verbo "jazer" ou com expressões como "risco de morte". A palavra "risco" sugere coisa ruim. Costuma-se dizer "risco de infecção", "risco de contágio", "risco de perder". O risco é sempre de coisa ruim, mas, quando se trata de morte...
Não foi à toa que, no poema "Consoada", Manuel Bandeira substituiu a morte por "A Indesejada das gentes", com letra maiúscula e tudo.
A paradoxal construção "risco de vida", já imposta pelo uso, resulta também do cruzamento com formas como "risco de perder a vida", "arriscar a vida", "pôr a vida em risco". Em linguagem escrita formal culta, no entanto, parece mais aconselhável empregar "risco de morte". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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