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PASQUALE CIPRO NETO
"Não há pegá-los"
Nas últimas colunas, direta ou indiretamente o verbo "haver" foi o protagonista de
nossas conversas. Na semana passada, tratamos da conjugação de
"haver" e de "reaver" e de algumas (poucas) das várias acepções
do verbo "haver".
Vamos ampliar a lista de significados. Começo pela sugestão do
atento leitor Antônio Barbin, de
São João da Boa Vista (SP), que se
refere a texto de minha autoria:
"O que me chamou a atenção foi
uma construção feita por V. Sa.,
em que aparece a expressão "não
há como justificar o acento...". Aí
está a minha dúvida: o emprego
do verbo "haver" na negativa seguida de infinitivo tem a acepção
de "ser possível". Dessa forma, fica
incorreto o emprego do "como", segundo esclareceu-me o confrade
Vedionil do Império, da Academia de Letras aqui da cidade".
Caro Barbin, de fato os dicionários de regência (Celso Luft e
Francisco Fernandes, entre outros) e os de sinônimos (o "Novo
Aurélio Século XXI" e o de Caldas
Aulete, entre outros) não registram esse emprego de "como", vivíssimo hoje não só na língua escrita, mas também na oral (informal, semiformal ou formal).
Todos os exemplos recolhidos
nos dicionários são clássicos e
confirmam o que diz o acadêmico
são-joanense citado por você.
Relendo Drummond, encontrei
este trecho de "Rostos Imóveis",
impressionante poema que o
mestre dedica a Otto Maria Carpeaux, um de nossos maiores críticos literários: "Sua mão pálida
diz adeus à Rússia./O tempo entra nele e sai sem conta./Os mortos passam rápidos, já não há pegá-los". "Não há pegá-los" significa "Não é possível pegá-los".
Quem ler "Os Sertões", de Euclides da Cunha, vai encontrar este
trecho, citado por Fernandes:
"Não há contê-lo, então, no ímpeto". Outro (belíssimo) exemplo
vem de Tristão da Cunha, citado
no "Aurélio": "Não há entender
mulheres, senhor Aires Ruivo".
É bom que se diga, no entanto,
que na língua viva de hoje frases
como "Não há como resolver isso"
ou "Não havia como obter as provas" (que os dicionários insistem
em não reconhecer) pareceriam
estranhas se delas fosse eliminado
o "como" ("Não há resolver isso"
ou "Não havia obter as provas").
Esse "como" parece resultar de
um cruzamento de construções,
cujo percurso talvez seja este:
"Como resolver isso?"/"Não é possível resolver isso"/"Não há como
resolver isso". Também não se pode esquecer a forte relação entre a
palavra "como" e a idéia de "modo", presente nessas frases.
Ao tratar do que propõe Antônio Barbin, eu talvez desagrade
ao leitor José Paulo Cunha, de
Santos (SP), que quer basicamente assuntos do dia-a-dia linguístico. Não me parece justo, caro Cunha. Cabe-me também a tarefa
de ajudar os leitores a compreender outros níveis de linguagem.
Aproveitando a maré, cito outro emprego de "haver", este bem
mais conhecido: "Há que fazer do
corpo uma morada...". O trecho é
de "Para Viver um Grande
Amor", de Vinicius de Moraes.
Nesse caso, em que é acompanhado da palavra "que" e de infinitivo, "haver" significa "ser preciso".
Outros exemplos, citados por
Luft, vêm de Vieira ("Não há que
fiar em lágrimas") e do povo
("Não há que fiar em Deus em
tempo de inverno"). É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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