São Paulo, quinta-feira, 22 de março de 2001

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PASQUALE CIPRO NETO

"Não há pegá-los"

Nas últimas colunas, direta ou indiretamente o verbo "haver" foi o protagonista de nossas conversas. Na semana passada, tratamos da conjugação de "haver" e de "reaver" e de algumas (poucas) das várias acepções do verbo "haver".
Vamos ampliar a lista de significados. Começo pela sugestão do atento leitor Antônio Barbin, de São João da Boa Vista (SP), que se refere a texto de minha autoria: "O que me chamou a atenção foi uma construção feita por V. Sa., em que aparece a expressão "não há como justificar o acento...". Aí está a minha dúvida: o emprego do verbo "haver" na negativa seguida de infinitivo tem a acepção de "ser possível". Dessa forma, fica incorreto o emprego do "como", segundo esclareceu-me o confrade Vedionil do Império, da Academia de Letras aqui da cidade".
Caro Barbin, de fato os dicionários de regência (Celso Luft e Francisco Fernandes, entre outros) e os de sinônimos (o "Novo Aurélio Século XXI" e o de Caldas Aulete, entre outros) não registram esse emprego de "como", vivíssimo hoje não só na língua escrita, mas também na oral (informal, semiformal ou formal).
Todos os exemplos recolhidos nos dicionários são clássicos e confirmam o que diz o acadêmico são-joanense citado por você.
Relendo Drummond, encontrei este trecho de "Rostos Imóveis", impressionante poema que o mestre dedica a Otto Maria Carpeaux, um de nossos maiores críticos literários: "Sua mão pálida diz adeus à Rússia./O tempo entra nele e sai sem conta./Os mortos passam rápidos, já não há pegá-los". "Não há pegá-los" significa "Não é possível pegá-los".
Quem ler "Os Sertões", de Euclides da Cunha, vai encontrar este trecho, citado por Fernandes: "Não há contê-lo, então, no ímpeto". Outro (belíssimo) exemplo vem de Tristão da Cunha, citado no "Aurélio": "Não há entender mulheres, senhor Aires Ruivo".
É bom que se diga, no entanto, que na língua viva de hoje frases como "Não há como resolver isso" ou "Não havia como obter as provas" (que os dicionários insistem em não reconhecer) pareceriam estranhas se delas fosse eliminado o "como" ("Não há resolver isso" ou "Não havia obter as provas").
Esse "como" parece resultar de um cruzamento de construções, cujo percurso talvez seja este: "Como resolver isso?"/"Não é possível resolver isso"/"Não há como resolver isso". Também não se pode esquecer a forte relação entre a palavra "como" e a idéia de "modo", presente nessas frases.
Ao tratar do que propõe Antônio Barbin, eu talvez desagrade ao leitor José Paulo Cunha, de Santos (SP), que quer basicamente assuntos do dia-a-dia linguístico. Não me parece justo, caro Cunha. Cabe-me também a tarefa de ajudar os leitores a compreender outros níveis de linguagem.
Aproveitando a maré, cito outro emprego de "haver", este bem mais conhecido: "Há que fazer do corpo uma morada...". O trecho é de "Para Viver um Grande Amor", de Vinicius de Moraes. Nesse caso, em que é acompanhado da palavra "que" e de infinitivo, "haver" significa "ser preciso".
Outros exemplos, citados por Luft, vêm de Vieira ("Não há que fiar em lágrimas") e do povo ("Não há que fiar em Deus em tempo de inverno"). É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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