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São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 2003

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NUTRIÇÃO

Médico britânico afirma que a desnutrição e o excesso de peso estão interligados e defende a comida saudável

Fome Zero requer "alfabetização" alimentar

DA REPORTAGEM LOCAL

Presidente de uma força-tarefa internacional contra a obesidade, o britânico Philip James, 64, acrescenta mais um ingrediente à polêmica sobre o projeto prioritário do governo Lula, o Fome Zero. Para o ele, o governo deveria obrigar as famílias atendidas a gastar os cupons de R$ 50 do programa somente em "comida saudável", como cereais, frutas e verduras.
James, uma das maiores autoridades em obesidade no mundo, participou neste mês, em Brasília, do fórum "Peso Saudável no Brasil", que reuniu médicos, governo e Ministério Público para discutir uma estratégia nacional.
Estudo apresentado no fórum mostra que o país gasta anualmente R$ 1,5 bilhão com o excesso de peso e doenças relacionadas -valor maior do que o gasto da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo em 2002. Aproximadamente 40% da população brasileira está acima do peso, segundo o último inquérito populacional sobre o assunto, realizado em 1997. O número quase triplicou nos últimos 20 anos.
"O Fome Zero é importantíssimo. Mas existe outra face da moeda que tem de ser prioritária também", afirma Walmir Coutinho, 44, vice-presidente da Federação Latino-Americana de Sociedades de Obesidade. Estudo com mais de 2.000 adultos em uma favela paulistana mostrou 8,5% de desnutrição, 14,6% de excesso de peso e 21,9% de obesidade. Entre as crianças brasileiras, a prevalência de obesidade cresceu 240% nos últimos 20 anos, contra 66% nos Estados Unidos.
"As pessoas dirão que o principal problema do país é a fome. Mas fome e obesidade estão fundamentalmente ligadas", disse James. Durante entrevista à Folha, o professor explicou essa relação.
(FABIANE LEITE)

Folha - O Brasil discute atualmente o problema da fome. Como o debate sobre a necessidade de combater a obesidade pode ser introduzido neste momento?
Philip James -
Quando as pessoas estão com fome e têm pouco dinheiro, compram o mais barato, que no Brasil são comidas ricas em gordura e açúcar. Estão desesperadas, buscam satisfazer a forme da maneira mais fácil. E gordura e açúcar são os principais ingredientes que levam à obesidade.
O nosso cérebro não está desenvolvido o suficiente para distinguir o que estamos comendo. Basta que a sensação de fome acabe. O cérebro não avisa: "Não tive frutas o bastante hoje".

Folha - O que é fundamental em uma política de governo contra a obesidade?
James -
É preciso um plano radical. O presidente de vocês introduziu esse debate sobre pobreza e fome. Mas é necessário pensar em uma maneira para promover uma mudança mais ampla. Os cupons custarão muito dinheiro ao governo. É possível fazer com que sejam utilizados somente para compra de comida de qualidade. É preciso começar um novo caminho, fazer um programa ainda melhor. Da forma como está, as pessoas podem usar o dinheiro apenas para comprar óleo e um pacote de açúcar. Mas o presidente Lula quer que essas pessoas sejam de fato mais saudáveis.
Neste mês, a OMS [Organização Mundial da Saúde] e a FAO [Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação] publicam relatório em que destacam que a comida de má qualidade é um dos fatores que causam mais mortes no mundo.
Estamos em um caminho perigoso, que os norte-americanos já trilharam. O público tem sido manipulado pela propaganda. Temos de tratar essa questão cuidadosamente, e não seguir o caminho dos norte-americanos. O exemplo vem dos finlandeses, que criaram um programa de alimentação completo.
Estudos mostram que, antes dos 14 anos, as crianças não têm ainda capacidade para escolher a melhor comida. É necessário proibir a venda de qualquer alimento de má qualidade em locais em que estudam crianças.
Na Finlândia, introduziram uma política de oferecer frutas e vegetais de graça -na verdade, com o preço embutido no custo total das refeições. O consumo de frutas e vegetais aumentou três vezes e, na população, houve diminuição da pressão arterial, do colesterol ruim, dos infartos do miocárdio e dos derrames.
Precisamos investir em educação para a alimentação saudável e também tomar algumas medidas, como proibir máquinas de refrigerante em escolas e empresas. Estudos mostram que o cérebro não é capaz de "medir" as calorias dos refrigerantes. Ou seja, você bebe muito sem sentir.

Folha - São medidas que demorarão a ser implementadas aqui. Não se conseguiu regulamentar adequadamente nem mesmo o álcool.
James -
Vocês têm alguns dos melhores especialistas em saúde pública. São bons no programa de Aids e de drogas, no combate ao tabagismo. Agora precisam também ter um bom programa de alimentação e também de atividade física. Existe um programa maravilhoso desenvolvido aqui [o Agita São Paulo, que incentiva a realização de 30 minutos diários de exercícios físicos e é considerado modelo pela OMS]. Gostaria de ver mudanças em Brasília, por exemplo. Gostaria de ver uma dessas grandes avenidas transformada em calçada e ciclovia. Estive em São Paulo. As ruas da cidade são boas para os carros, mas não para as pessoas.

Folha - As indústrias ainda vêem com reservas a possibilidade de fazer propaganda de produtos que fazem mal à saúde com responsabilidade social, ou seja, explicando os riscos.
James -
A indústria de alimentos faz tudo para vender a comida perigosa. As crianças são bombardeadas e manipuladas. É uma nova batalha. Eu gostaria que a indústria de alimentos investisse mais seus lucros em comida saudável. Mas elas ainda gastam cem vezes mais em comida perigosa.

Folha - No país, é comum tratar a obesidade com remédios alternativos, ervas, "poções mágicas". É a mesma coisa no resto do mundo?
James -
Na América Latina, esse problema é maior. Há médicos que fazem isso com pessoas pobres, que pensam que há uma mágica. Isso precisa ser regulamentado.
Por isso é necessária uma nova política para a obesidade. O Brasil deve dar o exemplo. O país é modelo para outros países e precisa mostrar o que deve ser feito.


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