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ARTIGO
A fome é inimiga da perfeição
PATRÍCIA MELO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A primeira gorda que eu vi foi a
Wilza Carla. Era uma foto, se não
me engano, da revista "Manchete". Carla com uma roupa insinuante, parte do seu corpo imenso, flácido, exposto com um certo
glamour. Adorei o cabelão loiro
dela, tão volumoso quanto o corpo, seu jeito debochado na foto, a
boca lambuzada de batom vermelho. Durante dias, fiquei olhando a
revista, as pernas enormes, a barriga, as curvas e dobras, as celulites
por toda parte, os pés e mãos minúsculos.
Não sei se vem daí o meu interesse pelas gordas, mas o fato é
que desde criança tenho curiosidade por elas. Esse, aliás, é o motivo pelo qual adoro viajar para a
Califórnia. Lá elas são gordas mesmo, do tipo pé-pão-de-forma, joelho-bola-de-futebol, mão-de-bebê
e dedinhos-de-croquete.
As obesas americanas têm um
jeito específico de se vestir, que já é
moda no Brasil: shorts agarrados
nas coxas, camisetas com motivos
infantis, cabelos desgrenhados e
sandálias do tipo veja meus dedões e minhas unhas compridas.
Devemos muito a elas. Se não fossem as gordas americanas, não sei
se teríamos aquelas embalagens
"oversized", aqueles baldes de pipoca que comemos nos cinemas,
hambúrgueres do tamanho de
uma pizza, nem as promoções
compre-um-e-leve-dois. Na última vez em que estive em Los Angeles, eu e minha filha brincávamos de contar pessoas nas ruas, eu
as gordas, ela as magras. Eu sempre saía ganhando no jogo.
O aspecto de bonomia e simplicidade que atribuo aos gordos faz
com que eu me reconcilie com a
humanidade. Assim como os gregos faziam a equação "beleza = superioridade", eu faço idiossincrática relação "obsesidade = bondade humana". Não me perguntem
por quê. Talvez pela minha tendência à obesidade. Conforme ganho quilos, vou ficando generosa,
mansa. Nada me deixa mais benévola do que uma Lajotinha da Kopenhagen. Por esse motivo ou por
outros ocultos, transformo-me
numa madre Teresa ao me relacionar com as obesas. Compreendo os gordos. Uma gorda com um
sorvete na mão é quase um pedido
de desculpas ambulante. Eu lhes
perdôo sempre, até saio da minha
dieta e compro também um sorvete, se possível bem calórico, só para ser solidária. Sofro do que os
americanos chamam de "Binge
Eating Disorder", compulsão alimentar que me faz, vez ou outra,
consumir uma quantidade calórica tão alta quanto a que Monica
Lewinsky ingeria no período pós-salão oval (entre 9.000 e 12 mil calorias). Assim, compreendo perfeitamente a teoria é-só-mais-um-sorvete-amanhã-começo-um-regime-duro, ou que-diferença-faz-mais-um-sorvete?
Nos locais públicos, excetuando
as americanas, que já se organizam em sociedades gorda-feliz e
adotam o estilo selvagem diante
das proteínas e guloseimas, as gordas são as que menos comem, as
que melhor se comportam com os
garfos. Elas sabem que estão sempre cercadas pelos observadores
de gordas, que nem sempre são
magros, na verdade, quase sempre
estão a caminho da obesidade e se
recusam a fazer o espetáculo da
glutonaria. Quem espera que um
gordo ataque um prato de comida
não como se fosse apenas comer,
mas matar o bicho antes de devorá-lo, não conhece a natureza dos
obesos. A verdade é que as gordas
não comem. Não na nossa frente.
Os magros é que vivem por aí,
em padarias, empanturrando-se
de pão de queijo e de outras porcarias. E os americanos, claro. É difícil encontrar uma gorda que admita comer muito. Marlene, que
trabalha em casa e pesa 120 quilos,
não sabe por que é gorda. Foi ao
médico preocupada com o inchaço de seus joelhos, fez todos os
exames e tudo deu normal. "Deve
ser nervoso."
Uma boa teoria. Os americanos
deveriam considerá-la, já que 300
mil gordos morrem a cada ano por
causa de problemas relacionados
à obesidade. A culpa é do governo,
que não seguiu o exemplo do Iraque. Saddam, em fevereiro, cortou
o salário de funcionários acima do
peso. Na verdade, sua equipe estava reformulando a medida em razão da guerra. Iria aumentar os salários de quem conseguisse se
manter no peso durante o conflito.
Lula também devia adotar a medida Saddam pré-conflito. Além
do Fome Zero, que se preocupa
com os 46 milhões que não têm o
que comer, deveria contratar alguém tão competente quanto José
Graziano para elaborar a campanha Calma, Gordo, Calma, para
ajudar os 70 milhões que estão acima do peso, cerca de 40% da população brasileira.
Mas o fato é que não deixo de me
perguntar: o que há de fascinante
nos gordos?
Herdamos dos gregos a nossa
sensibilidade estética. Para os gregos, como se sabe, o conceito de
beleza estava relacionado à idéia
de proporcionalidade harmônica.
O curioso é que mesmo na arte
moderna, que rejeita os conceitos
universais que regiam as artes, é
possível encontrar a idéia de proporção, simetria. Há também algo
harmônico na "estranha formosidade disforme" da produção artística contemporânea.
Meu fascínio pelas gordas tem a
ver com isso. Vejo nas suas sinuosidades opulentas uma certa regularidade geométrica, uma "disformidade formosa".
Talvez possamos ver o fenômeno da obesidade como a teoria
medieval do Homo quadratus, o
homem como pequeno cosmos.
Literalmente. Uma bola humana
sempre em expansão.
O fato é que as magras ficarão
sem espaço no futuro. Marlene já
me alertou. "Na Rocinha, a senhora ia ser chamada de sem-terra.
Falta carne na bunda e no peito."
Os homens lá, segundo Marlene,
gostam de ter "lugar para meter a
mão".
Shakespeare tinha razão. Desconfie dos magros. A fome é inimiga da perfeição.
Patrícia Melo é escritora.
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