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São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 2003

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ARTIGO

A fome é inimiga da perfeição

PATRÍCIA MELO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A primeira gorda que eu vi foi a Wilza Carla. Era uma foto, se não me engano, da revista "Manchete". Carla com uma roupa insinuante, parte do seu corpo imenso, flácido, exposto com um certo glamour. Adorei o cabelão loiro dela, tão volumoso quanto o corpo, seu jeito debochado na foto, a boca lambuzada de batom vermelho. Durante dias, fiquei olhando a revista, as pernas enormes, a barriga, as curvas e dobras, as celulites por toda parte, os pés e mãos minúsculos.
Não sei se vem daí o meu interesse pelas gordas, mas o fato é que desde criança tenho curiosidade por elas. Esse, aliás, é o motivo pelo qual adoro viajar para a Califórnia. Lá elas são gordas mesmo, do tipo pé-pão-de-forma, joelho-bola-de-futebol, mão-de-bebê e dedinhos-de-croquete.
As obesas americanas têm um jeito específico de se vestir, que já é moda no Brasil: shorts agarrados nas coxas, camisetas com motivos infantis, cabelos desgrenhados e sandálias do tipo veja meus dedões e minhas unhas compridas. Devemos muito a elas. Se não fossem as gordas americanas, não sei se teríamos aquelas embalagens "oversized", aqueles baldes de pipoca que comemos nos cinemas, hambúrgueres do tamanho de uma pizza, nem as promoções compre-um-e-leve-dois. Na última vez em que estive em Los Angeles, eu e minha filha brincávamos de contar pessoas nas ruas, eu as gordas, ela as magras. Eu sempre saía ganhando no jogo.
O aspecto de bonomia e simplicidade que atribuo aos gordos faz com que eu me reconcilie com a humanidade. Assim como os gregos faziam a equação "beleza = superioridade", eu faço idiossincrática relação "obsesidade = bondade humana". Não me perguntem por quê. Talvez pela minha tendência à obesidade. Conforme ganho quilos, vou ficando generosa, mansa. Nada me deixa mais benévola do que uma Lajotinha da Kopenhagen. Por esse motivo ou por outros ocultos, transformo-me numa madre Teresa ao me relacionar com as obesas. Compreendo os gordos. Uma gorda com um sorvete na mão é quase um pedido de desculpas ambulante. Eu lhes perdôo sempre, até saio da minha dieta e compro também um sorvete, se possível bem calórico, só para ser solidária. Sofro do que os americanos chamam de "Binge Eating Disorder", compulsão alimentar que me faz, vez ou outra, consumir uma quantidade calórica tão alta quanto a que Monica Lewinsky ingeria no período pós-salão oval (entre 9.000 e 12 mil calorias). Assim, compreendo perfeitamente a teoria é-só-mais-um-sorvete-amanhã-começo-um-regime-duro, ou que-diferença-faz-mais-um-sorvete?
Nos locais públicos, excetuando as americanas, que já se organizam em sociedades gorda-feliz e adotam o estilo selvagem diante das proteínas e guloseimas, as gordas são as que menos comem, as que melhor se comportam com os garfos. Elas sabem que estão sempre cercadas pelos observadores de gordas, que nem sempre são magros, na verdade, quase sempre estão a caminho da obesidade e se recusam a fazer o espetáculo da glutonaria. Quem espera que um gordo ataque um prato de comida não como se fosse apenas comer, mas matar o bicho antes de devorá-lo, não conhece a natureza dos obesos. A verdade é que as gordas não comem. Não na nossa frente.
Os magros é que vivem por aí, em padarias, empanturrando-se de pão de queijo e de outras porcarias. E os americanos, claro. É difícil encontrar uma gorda que admita comer muito. Marlene, que trabalha em casa e pesa 120 quilos, não sabe por que é gorda. Foi ao médico preocupada com o inchaço de seus joelhos, fez todos os exames e tudo deu normal. "Deve ser nervoso."
Uma boa teoria. Os americanos deveriam considerá-la, já que 300 mil gordos morrem a cada ano por causa de problemas relacionados à obesidade. A culpa é do governo, que não seguiu o exemplo do Iraque. Saddam, em fevereiro, cortou o salário de funcionários acima do peso. Na verdade, sua equipe estava reformulando a medida em razão da guerra. Iria aumentar os salários de quem conseguisse se manter no peso durante o conflito.
Lula também devia adotar a medida Saddam pré-conflito. Além do Fome Zero, que se preocupa com os 46 milhões que não têm o que comer, deveria contratar alguém tão competente quanto José Graziano para elaborar a campanha Calma, Gordo, Calma, para ajudar os 70 milhões que estão acima do peso, cerca de 40% da população brasileira.
Mas o fato é que não deixo de me perguntar: o que há de fascinante nos gordos?
Herdamos dos gregos a nossa sensibilidade estética. Para os gregos, como se sabe, o conceito de beleza estava relacionado à idéia de proporcionalidade harmônica. O curioso é que mesmo na arte moderna, que rejeita os conceitos universais que regiam as artes, é possível encontrar a idéia de proporção, simetria. Há também algo harmônico na "estranha formosidade disforme" da produção artística contemporânea.
Meu fascínio pelas gordas tem a ver com isso. Vejo nas suas sinuosidades opulentas uma certa regularidade geométrica, uma "disformidade formosa".
Talvez possamos ver o fenômeno da obesidade como a teoria medieval do Homo quadratus, o homem como pequeno cosmos. Literalmente. Uma bola humana sempre em expansão.
O fato é que as magras ficarão sem espaço no futuro. Marlene já me alertou. "Na Rocinha, a senhora ia ser chamada de sem-terra. Falta carne na bunda e no peito." Os homens lá, segundo Marlene, gostam de ter "lugar para meter a mão".
Shakespeare tinha razão. Desconfie dos magros. A fome é inimiga da perfeição.


Patrícia Melo é escritora.


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