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MOACYR SCLIAR
Apagando memórias
"O que você já esqueceu e não esquece jamais? Falha na memória não escolhe idade"
Folhaequilíbrio, 18.mai.2000
O casamento , para ela,
era isso: quarenta e oito
anos de opressão, de humilhações, de vexames. Um verdadeiro
tirano, o marido dela, um homem
autoritário que lhe dava ordens
sem cessar e que a ridicularizava
na frente de todo o mundo: minha mulher é um desastre, proclamava, não faz nada direito.
E ela? Ela calava. Jamais protestara. Até os filhos se indignavam
com aquela passividade: você não
pode se deixar dominar dessa
maneira, diziam, você tem de fazer alguma coisa. Ela suspirava,
resignada, não dizia nada.
Mas estava, sim, resolvida a se
vingar. Sua vingança seria cruel e
requintada, uma vingança capaz
de indenizá-la por uma vida de
sofrimentos. Só faltava descobrir
a maneira de fazê-lo.
A idéia lhe ocorreu quando,
uma manhã, o marido perguntou
se ela não vira seu cachimbo. Entre parênteses, gostava muito disso, de fumar cachimbo. Verdade
que a ela o cheiro deixava tonta;
mas ele pouco estava ligando. Entre a mulher e o cachimbo prefiro
o cachimbo,costumava dizer, entre gargalhadas. Mas então ele tinha esquecido onde deixara o cachimbo -sinal de que a memória lhe falhava. E ela resolveu tirar proveito disso. Para quê? Para
enlouquecer o marido. Exatamente: enlouquecê-lo. Era o mínimo a que podia almejar.
E aí começou o jogo. Onde está
o cachimbo, perguntava ele. Ali
onde você o colocou, dizia ela, em
cima do televisor.
Ele ficava perplexo: eu coloquei
o cachimbo em cima do televisor?
E por que teria feito isso, se ali
não é lugar de cachimbo? Quanto
mais perturbado ele ficava, mais
ela se entusiasmava. Era como
uma gata brincando com um camundongo, um camundongo
triste e desamparado. Você não
viu o meu cachimbo? Está ali na
prateleira, onde você o deixou.
Eu? Eu deixei o cachimbo na prateleira? A coisa ia num crescendo,
a angústia dele aumentando
sempre. Ela já tinha o final planejado: um dia o cachimbo sumiria
para sempre. E quando ele perguntasse ela responderia: você o
jogou fora. O que seria um golpe...
mortal? Mortal.
Só que ele morreu antes disso.
Um ataque do coração, provavelmente. Ela chorou muito: em parte porque tinha pena dele, em
parte porque não pudera consumar sua vingança. Mas aí teve
uma idéia: colocar o cachimbo no
caixão. Para atormentá-lo pela
eternidade afora. Procurou o cachimbo, mas não o achou. Simplesmente não conseguia lembrar
de onde o colocara. Ali, em alguma parte da casa, estava o maldito objeto. Só que ela não o encontrava. E isto significava que jamais teria paz. Que aquela lembrança a torturaria até a morte.
O escritor Moacyr Scliar escreve nesta
coluna, às segundas-feiras, um texto de
ficção baseado em matérias publicadas
no jornal.
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