|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"Redutores" de Porto Alegre convivem com miséria e tráfico
DO ENVIADO ESPECIAL
Na ruela sem nome e de poucas
casas onde mora o Tigrão há pelo
menos dez pessoas com Aids ou
HIV. Não há ninguém ali que não
tenha perdido alguém pela doença. No bairro todo são centenas de
pessoas que injetam cocaína.
Mais da metade está infectada.
O bairro é o Campo da Tuca, periferia da zona sul de Porto Alegre, uma das primeiras áreas de
ação do programa de redução de
danos da cidade. Foi escolhida pela fama de concentrar traficantes e
usuários de "pico" e de registrar
uma das mais altas taxas de casos
de Aids da cidade.
O barraco do Tigrão foi o primeiro ponto de troca. "Se esse
pessoal do arpão (seringa) tivesse
aparecido antes, não tinha pego a
doença", diz Tigrão -Milton Xavier da Silva, 46, funcionário público, juiz de futebol e que injeta
cocaína há mais de 15 anos. A mulher morreu de Aids e um dos filhos está infectado.
O banheiro do barraco é um dos
"bretes" da rua, onde os dependentes se juntam para se aplicar.
Brete é o nome que se dá ao pequeno curral onde o gado é vacinado, marcado ou abatido. De comum, os pontos de pico e o brete
do gado têm a sujeira e o sangue.
Era assim antes de os redutores
chegarem. Hoje o brete do Tigrão
tem um mínimo de higiene e ali só
usam seringas novas. A seringa é
de graça, mas para usar o banheiro ele cobra R$ 0,20.
"Encontramos bretes onde as
pessoas ficavam dias sem sair,
usavam o próprio quartinho como banheiro, o cheiro era insuportável", diz Domiciano Siqueira, do programa de redução de
danos de Porto Alegre.
Visita ao Drácula
Início da noite da última quarta-feira e a kombi da Prefeitura de
Porto Alegre está saindo do PAM-3, o posto de saúde do bairro dos
Comerciários, zona sul da cidade.
Ali funciona a sede do programa
de redução de Porto Alegre.
A perua leva oito "redutores de
danos", como são chamadas as
pessoas que vão às ruas trocar seringas, distribuir camisinhas e falar com os dependentes de droga.
Porto Alegre inovou ao transformar dependentes de drogas em
redutores. Antes, só eram aceitos
os que tinham deixado o uso. Cada um ganha R$ 150 por mês.
O "campo", de onde são retiradas 8.000 seringas por mês, está
dividido em 28 microáreas espalhadas pelas zonas leste, sul e central. Dois redutores ficam na Rocinha, assim chamada por causa
do tráfico. Depois que escurece,
ninguém passa por ali sem dizer
onde vai. Os redutores são conhecidos e cumprimentados nas portas dos barracos sem luz.
Um deles, Deivez Domingues,
vivia na rua antes de entrar para o
programa. Agora, mora em casa
alugada com a mulher e um filho.
Drácula é um dos "amigos do
programa", como são chamados
aqueles que intermedeiam a ação
dos redutores. São usuários que
fazem contatos com os "arredios", entregam as seringas novas
e recolhem as usadas. Não ganham nada por isso.
O barraco é minúsculo, úmido e
cheira a urina. Há apenas uma cama de solteiro e uns banquinhos
onde os dependentes se juntam
para as sessões. As paredes estão
decoradas com velhos discos de
vinil e retratos de mulheres nuas.
Drácula junta dinheiro para a cocaína fazendo bicos como pedreiro. Já teve casa e família com cinco
filhos.
"Comecei a me picar 12 anos
atrás e não parei mais. Fui perdendo tudo", afirma.
Drácula pegou Aids mas não toma remédios. "Ela está quietinha,
se tomar alguma coisa vou provocá-la." Valmir Britto Souza, 48,
ganhou o apelido na "instituição", a Febem da época. Um dia
foi defender a mãe que apanhava
do pai e acabou matando-o com
uma faca. Tinha 16 anos.
Nos primeiros contatos com dependentes, os redutores encontraram uma família de 12 pessoas
onde todos se aplicavam, avô, filhos, genros e netos. Em um barraco da periferia, uma mãe dependente aplicava no filho de três
anos. Na região central, há meninos de seis anos que usam injeções de cocaína.
O "brete" da vó Eva
São quase 22h quando a perua
Kombi chega ao "brete da vó
Eva", como é conhecido o barraco
de madeira onde vive com o neto
Luis, de 16 anos. Vó Eva tem 76
anos e é cega.
As paredes e o telhado estão
pretos pela fumaça do fogão de lenha. Eva, de cabelos muito brancos e a boca murcha, dorme num
dos colchões. Ao lado, em silêncio, dois rapazes estão sentados
em banquinhos, a seringa, os potes e a cocaína no chão. É Luis
quem faz o garrote no braço dos
visitantes e aplica as doses. Em
troca, recebe sua porção de cocaína que ele mesmo injeta.
Luis, o Alemão, é um hábil aplicador e sabe achar a veia como
poucos. Seu sonho é ser auxiliar
de enfermagem.
Os "redutores" deixam luvas
para Luis não se infectar e um maço de flores para vó Eva. Na véspera eles a encontraram chorando
por que ninguém se lembrara dela
no Dia das Mães. Um dos seus filhos morreu de Aids anos atrás,
ali mesmo. Desde então, uma das
filhas transformou o barraco ao
lado num ponto de troca de seringas, para "salvar os moços da
rua".
Os "visitantes" que tomaram
suas injeções saem quietos como
chegaram e Eva continua dormindo. O menino Alemão despede-se sem levantar os olhos do
minigame que manipula com as
mãos sujas de carvão.
(AURELIANO BIANCARELLI)
Texto Anterior: Droga: Troca de seringas "caça" usuário de elite Próximo Texto: Violência: Polícia liberta empresário sequestrado Índice
|