São Paulo, segunda-feira, 22 de maio de 2000


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"Redutores" de Porto Alegre convivem com miséria e tráfico

DO ENVIADO ESPECIAL

Na ruela sem nome e de poucas casas onde mora o Tigrão há pelo menos dez pessoas com Aids ou HIV. Não há ninguém ali que não tenha perdido alguém pela doença. No bairro todo são centenas de pessoas que injetam cocaína. Mais da metade está infectada.
O bairro é o Campo da Tuca, periferia da zona sul de Porto Alegre, uma das primeiras áreas de ação do programa de redução de danos da cidade. Foi escolhida pela fama de concentrar traficantes e usuários de "pico" e de registrar uma das mais altas taxas de casos de Aids da cidade.
O barraco do Tigrão foi o primeiro ponto de troca. "Se esse pessoal do arpão (seringa) tivesse aparecido antes, não tinha pego a doença", diz Tigrão -Milton Xavier da Silva, 46, funcionário público, juiz de futebol e que injeta cocaína há mais de 15 anos. A mulher morreu de Aids e um dos filhos está infectado.
O banheiro do barraco é um dos "bretes" da rua, onde os dependentes se juntam para se aplicar. Brete é o nome que se dá ao pequeno curral onde o gado é vacinado, marcado ou abatido. De comum, os pontos de pico e o brete do gado têm a sujeira e o sangue.
Era assim antes de os redutores chegarem. Hoje o brete do Tigrão tem um mínimo de higiene e ali só usam seringas novas. A seringa é de graça, mas para usar o banheiro ele cobra R$ 0,20.
"Encontramos bretes onde as pessoas ficavam dias sem sair, usavam o próprio quartinho como banheiro, o cheiro era insuportável", diz Domiciano Siqueira, do programa de redução de danos de Porto Alegre.

Visita ao Drácula
Início da noite da última quarta-feira e a kombi da Prefeitura de Porto Alegre está saindo do PAM-3, o posto de saúde do bairro dos Comerciários, zona sul da cidade. Ali funciona a sede do programa de redução de Porto Alegre.
A perua leva oito "redutores de danos", como são chamadas as pessoas que vão às ruas trocar seringas, distribuir camisinhas e falar com os dependentes de droga. Porto Alegre inovou ao transformar dependentes de drogas em redutores. Antes, só eram aceitos os que tinham deixado o uso. Cada um ganha R$ 150 por mês.
O "campo", de onde são retiradas 8.000 seringas por mês, está dividido em 28 microáreas espalhadas pelas zonas leste, sul e central. Dois redutores ficam na Rocinha, assim chamada por causa do tráfico. Depois que escurece, ninguém passa por ali sem dizer onde vai. Os redutores são conhecidos e cumprimentados nas portas dos barracos sem luz.
Um deles, Deivez Domingues, vivia na rua antes de entrar para o programa. Agora, mora em casa alugada com a mulher e um filho.
Drácula é um dos "amigos do programa", como são chamados aqueles que intermedeiam a ação dos redutores. São usuários que fazem contatos com os "arredios", entregam as seringas novas e recolhem as usadas. Não ganham nada por isso.
O barraco é minúsculo, úmido e cheira a urina. Há apenas uma cama de solteiro e uns banquinhos onde os dependentes se juntam para as sessões. As paredes estão decoradas com velhos discos de vinil e retratos de mulheres nuas. Drácula junta dinheiro para a cocaína fazendo bicos como pedreiro. Já teve casa e família com cinco filhos.
"Comecei a me picar 12 anos atrás e não parei mais. Fui perdendo tudo", afirma.
Drácula pegou Aids mas não toma remédios. "Ela está quietinha, se tomar alguma coisa vou provocá-la." Valmir Britto Souza, 48, ganhou o apelido na "instituição", a Febem da época. Um dia foi defender a mãe que apanhava do pai e acabou matando-o com uma faca. Tinha 16 anos.
Nos primeiros contatos com dependentes, os redutores encontraram uma família de 12 pessoas onde todos se aplicavam, avô, filhos, genros e netos. Em um barraco da periferia, uma mãe dependente aplicava no filho de três anos. Na região central, há meninos de seis anos que usam injeções de cocaína.

O "brete" da vó Eva
São quase 22h quando a perua Kombi chega ao "brete da vó Eva", como é conhecido o barraco de madeira onde vive com o neto Luis, de 16 anos. Vó Eva tem 76 anos e é cega.
As paredes e o telhado estão pretos pela fumaça do fogão de lenha. Eva, de cabelos muito brancos e a boca murcha, dorme num dos colchões. Ao lado, em silêncio, dois rapazes estão sentados em banquinhos, a seringa, os potes e a cocaína no chão. É Luis quem faz o garrote no braço dos visitantes e aplica as doses. Em troca, recebe sua porção de cocaína que ele mesmo injeta.
Luis, o Alemão, é um hábil aplicador e sabe achar a veia como poucos. Seu sonho é ser auxiliar de enfermagem.
Os "redutores" deixam luvas para Luis não se infectar e um maço de flores para vó Eva. Na véspera eles a encontraram chorando por que ninguém se lembrara dela no Dia das Mães. Um dos seus filhos morreu de Aids anos atrás, ali mesmo. Desde então, uma das filhas transformou o barraco ao lado num ponto de troca de seringas, para "salvar os moços da rua".
Os "visitantes" que tomaram suas injeções saem quietos como chegaram e Eva continua dormindo. O menino Alemão despede-se sem levantar os olhos do minigame que manipula com as mãos sujas de carvão.
(AURELIANO BIANCARELLI)


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