São Paulo, segunda-feira, 22 de maio de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

Voando alto


Depois, arremessava-os como ninguém, atingindo alturas e distâncias absolutamente incríveis

Sabe aqueles aviões de papel que você fazia quando criança para passar o tempo? Pois tem gente levando esta brincadeira a sério. Folhateen, 15/5

ELE TINHA uma longa pena para cumprir na prisão e já estava resignado a isso quando leu no jornal a notícia de que se realizava em Salzburgo, Áustria, o campeonato mundial de aviões de papel.
O que de imediato levou-o de volta à infância. Em criança, fora considerado o gênio dos aviões de papel. Em primeiro lugar sabia fazê-los de acordo com novos e ousados modelos criados exclusivamente por sua imaginação. Depois, arremessava-os como ninguém, atingindo alturas e distâncias absolutamente incríveis -tão incríveis que uma revista de bairro entrevistou-o a respeito. Ele ainda tinha o recorte mostrando-o, menino sorridente, a empunhar um avião de papel.
Aquilo lhe deu uma idéia. Quem sabe podia usar um avião de papel -não para se divertir, mas para conquistar a liberdade? Maluquice, talvez, mas não custava tentar. Não lhe faltava tempo para isso.
Começou experimentando com aviões de papel progressivamente maiores. A cada modelo acrescentava um peso, e conseguiu estabelecer uma relação entre o tamanho do avião e a carga que poderia carregar. Era magrinho, mirrado, de modo que o peso não seria grande problema. Estabelecidas as dimensões do avião, que obviamente não seria tão pequeno assim, viu-se confrontado com dois problemas. O primeiro, arranjar o papel adequado. Não foi tão difícil: encarregado da limpeza do depósito do presídio, furtou dali várias folhas grandes de resistente papel pardo, de embrulho, além de um frasco de cola. Segundo problema: onde armar o avião, de onde arremessá-lo? Tratava-se de algo que tinha de ficar em segredo. De novo, porém, a sorte o ajudou. Num dos pavilhões havia uma espécie de pequeno terraço, em parte coberto, ao qual, por alguma razão, ninguém subia. Lugar ideal. Ali poderia confeccionar tranqüilamente seu avião.
Restava o problema final, o do arremesso. Que ele, de novo, resolveu com muita engenhosidade. Com a borracha de velhas câmaras de pneus, também subtraídas do depósito, fez uma espécie de estilingue gigante. Preso ao gradil do terraço, o dito estilingue daria ao avião impulso suficiente para que ele pegasse uma corrente de ar e transpusesse os muros do presídio.
Tudo pronto, ele preparou-se para conquistar a liberdade: marcara o vôo para as oito da noite. Mas aí o Destino interveio. Justamente naquele dia ocorreu o grande motim dos presídios. Os prisioneiros subiram ao teto. Um deles chegou ao terraço onde estava o avião de papel. Achou esquisita aquela coisa e não hesitou: prendeu fogo ao papel.
Do chão ele viu desfazer-se em fumaça sua esperança de alcançar a liberdade. E olhava com raiva o companheiro de prisão. Naquele momento tinha certeza de uma única coisa: há criminosos para quem até a prisão perpétua é pouco.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


Texto Anterior: 1º fim de semana após ataques tem poucas ações
Próximo Texto: Há 50 anos: EUA explodem bomba de hidrogênio no oceano Pacífico
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.