|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
Voando alto
Depois, arremessava-os como ninguém, atingindo alturas e distâncias absolutamente incríveis
|
Sabe aqueles aviões de papel que
você fazia quando criança para passar o tempo? Pois tem gente levando esta brincadeira a sério. Folhateen, 15/5
ELE TINHA uma longa pena para cumprir na prisão e já estava resignado a isso quando leu no jornal a notícia de que se realizava em Salzburgo, Áustria, o campeonato mundial de aviões de papel.
O que de imediato levou-o de volta à infância. Em criança, fora considerado o gênio dos aviões de papel.
Em primeiro lugar sabia fazê-los de
acordo com novos e ousados modelos criados exclusivamente por sua
imaginação. Depois, arremessava-os como ninguém, atingindo alturas
e distâncias absolutamente incríveis -tão incríveis que uma revista
de bairro entrevistou-o a respeito.
Ele ainda tinha o recorte mostrando-o, menino sorridente, a empunhar um avião de papel.
Aquilo lhe deu uma idéia. Quem
sabe podia usar um avião de papel
-não para se divertir, mas para
conquistar a liberdade? Maluquice,
talvez, mas não custava tentar. Não
lhe faltava tempo para isso.
Começou experimentando com
aviões de papel progressivamente
maiores. A cada modelo acrescentava um peso, e conseguiu estabelecer
uma relação entre o tamanho do
avião e a carga que poderia carregar.
Era magrinho, mirrado, de modo
que o peso não seria grande problema. Estabelecidas as dimensões do
avião, que obviamente não seria tão
pequeno assim, viu-se confrontado
com dois problemas. O primeiro,
arranjar o papel adequado. Não foi
tão difícil: encarregado da limpeza
do depósito do presídio, furtou dali
várias folhas grandes de resistente
papel pardo, de embrulho, além de
um frasco de cola. Segundo problema: onde armar o avião, de onde arremessá-lo? Tratava-se de algo que
tinha de ficar em segredo. De novo,
porém, a sorte o ajudou. Num dos
pavilhões havia uma espécie de pequeno terraço, em parte coberto, ao
qual, por alguma razão, ninguém
subia. Lugar ideal. Ali poderia confeccionar tranqüilamente seu avião.
Restava o problema final, o do arremesso. Que ele, de novo, resolveu
com muita engenhosidade. Com a
borracha de velhas câmaras de
pneus, também subtraídas do depósito, fez uma espécie de estilingue
gigante. Preso ao gradil do terraço, o
dito estilingue daria ao avião impulso suficiente para que ele pegasse
uma corrente de ar e transpusesse
os muros do presídio.
Tudo pronto, ele preparou-se para conquistar a liberdade: marcara
o vôo para as oito da noite. Mas aí o
Destino interveio. Justamente naquele dia ocorreu o grande motim
dos presídios. Os prisioneiros subiram ao teto. Um deles chegou ao
terraço onde estava o avião de papel. Achou esquisita aquela coisa e
não hesitou: prendeu fogo ao papel.
Do chão ele viu desfazer-se em
fumaça sua esperança de alcançar a
liberdade. E olhava com raiva o
companheiro de prisão. Naquele
momento tinha certeza de uma
única coisa: há criminosos para
quem até a prisão perpétua é pouco.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
Texto Anterior: 1º fim de semana após ataques tem poucas ações Próximo Texto: Há 50 anos: EUA explodem bomba de hidrogênio no oceano Pacífico Índice
|