São Paulo, sábado, 22 de julho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Próximo Texto | Índice

INVERNO
Segundo a Prefeitura de São Paulo, só 30% dos moradores de rua aceitam ser levados para os albergues públicos
Sem-teto resiste ao frio para manter ponto

Cacá Monteiro/Folha Imagem
Termômetro marca 6ºC na avenida Paulista durante a madrugada de ontem; a temperatura mínima na cidade foi de 4,5ºC


ESTANISLAU MARIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Banho, jantar sólido e cama com dois cobertores? Ou papelão na calçada? A maioria dos moradores de rua em São Paulo rejeita a proposta de ir ao albergue oferecido pela prefeitura paulistana e escolhe a calçada, mesmo nas noites do inverno.
Eles têm medo de sair e perder o ponto que ocupam nas ruas e as relações que desenvolveram. Preferem ficar e marcar o território.
"Além de ter um canto onde guardam pertences, estocam papelão, mantêm uma carrocinha ou um cachorro, eles recebem caridade do comércio local e da vizinhança", explica Alderon Pereira da Costa, 38, coordenador do projeto Rede Rua, que desenvolve projetos com os sem-teto e edita o jornal "O Trecheiro" (referência às pessoas que andam de trecho em trecho).
Segundo dados da Prefeitura de São Paulo, todas as noites no máximo 30% dos moradores de rua aceitam ir aos albergues. Ontem, 368 abordagens e 44 adesões.

Resistência
"Não, eu prefiro ficar aqui, onde eu moro. Prefiro ficar assim solta", disse a sem-teto Glória de Souza, debaixo da estação Armênia do metrô (centro da cidade).
A Folha acompanhou uma das equipes na ronda da "Operação Inverno" da prefeitura, durante a madrugada de ontem. A temperatura mínima chegou a 4,5 ºC, entre 5h30 e 7h.
A psicóloga Solange Datri, 43, um motorista e três guardas municipais -dois homens e uma mulher- abordaram nove pessoas entre 23h30 e 2h. Três aceitaram o convite, apenas um deles sem resistência.
"Boa noite, senhor. Somos assistentes da prefeitura. O senhor quer ir para o albergue?", perguntou a psicóloga.
José de Aquiles, deficiente físico, rejeitou. "Então deixa eu abrir uns jornais para o senhor."
"Eu não leio, dona", disse ele, sem entender que era para deitar em cima, mas aceitou a "cama".
"Cobertor? Vocês têm cobertor?", perguntou interessado Miguel Moreno Jr., que dormia direto no chão, embriagado, sem coberta, apenas de camisa, calça e jaqueta jeans. "No albergue da prefeitura tem", respondeu Solange. "Não. Não quero ir", retrucou desanimado. Mas o frio era maior e ele se rendeu.
José Raimundo da Silva, 64, "deu mais trabalho". "Fui uma vez e nunca mais", respondeu ríspido, deitado sobre um cobertor e coberto com outro, em uma calçada de Higienópolis, bairro nobre da região central da cidade.
"É ruim lá. Se for para morrer, morro aqui. Não preciso de nada. Tenho coberta, o povo me dá comida." Depois de muita insistência acabou aceitando.

"Lavo a mão e o pé"
O primeiro albergue indicado, no Canindé (zona norte), estava lotado. No Glicério (centro), tinha vaga. Roberto Silva, pego na área central de São Paulo, rebelou-se contra o banho obrigatório para quem deseja pernoitar no local.
"Eu lavo a mão e o pé. Já tá bom", afirmou o morador de rua. Acabou conseguindo.
Doze peruas e dois ônibus começam entre 18h e 19h as rondas pelo centro ampliado (Sé, República, Consolação, Santa Cecília, Bom Retiro, Brás, Bela Vista, Liberdade, Cambuci e Pari), que concentra 4.606 dos 8.704 moradores de rua da cidade, de acordo com dados de recenseamento feito neste ano pela prefeitura.
Depois da meia-noite, quando em geral o frio aperta, acaba a ronda e o recolhimento é feito só por solicitação, geralmente de vizinhos, motoristas ou donos de bares, pelo telefone 199.



Próximo Texto: Campos registrou -3,1ºC ontem
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.