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OPINIÃO
Aloysio Biondi, doutor em tudo
WASHINGTON NOVAES
Com Aloysio Biondi , desaparece um tipo raro de jornalista -competente, experiente,
apaixonado, detentor de um acervo impressionante de informações sobre o Brasil e principalmente sobre a sua economia. Ao
mesmo tempo, extremamente
pessoal, distante de ideologias, refratário a grupos, poderes, conveniências, meios-termos. Nada
disso o prendia nem ditava sua
conduta jornalística -seguia
apenas sua consciência, ao preço
que fosse.
Sempre foi assim. Conheci-o
em 1956, quando fiz teste para revisor da Folha da Manhã, mãe
desta Folha de S.Paulo. Estranho
que pareça, ele era sub-chefe da
Divisão de Sucursais, Correspondentes e Representantes, à qual a
revisão era subordinada. E era ele
quem supervisionava os testes.
Um mês depois, chamou-me
par a trabalhar como redator de
notícias do interior do Estado
-uma pedreira, já que nos obrigava a tornar interessantes informações passadas em meia dúzia
de linhas pelos correspondentes.
Aloysio era rigorosíssimo, mandava reescrever muitas vezes a
mesma notícia -que tinha de
sair clara, elegante, impecável,
sem gerúndios.
Embora muito moço -tinha
pouco mais de 20 anos nessa época-, já era apontado como prodígio desde sua cidade de origem,
São José do Rio Pardo (260 km ao
norte de SP), onde assombrou
uma banca julgadora com seus
conhecimentos sobre Euclydes da
Cunha e "Os Sertões", na olimpíada literária que se realizava todos
os anos em homenagem ao escritor, que viveu ali um tempo.
Na Folha também era considerado um prodígio. Mário Mazzei
Guimarães, então redator-chefe,
admirava-se com a qualidade dos
editoriais que Aloysio produzia
sobre temas do interior do Estado, revelando um conhecimento e
maturidade que seriam sua marca
pela vida afora.
Depois, correu mundo, muitas
redações, voltou à Folha com
Cláudio Abramo, mudou-se para
o Rio, onde nos reencontramos,
em uma das muitas vezes, na revista "Visão". Saímos de lá por
causa de um atrito com o jovem
então ministro da Fazenda, Delfim Netto, a quem Aloysio, como
editor de economia, criticava duramente pela política de abertura
desregrada das importações e endividamento externo. Já então o
país sofria com essas coisas, Aloysio não se conformava, enfurecia-se com cada número que descobria.
Fomos, juntos, fundar uma revista econômica -"Fator"- que
só durou três números, sufocada
pelo Ato Institucional nº 5. Na capa do primeiro número, uma foto
do ator Joel Barcellos com a boca
entupida de dólares. Feroz, como
o Aloysio, que a planejara.
Reencontramo-nos no "Correio
da Manhã", onde fizemos juntos
o "Diretor Econômico", um caderno diário, de muito êxito e vida breve, tais as resistências que
levantou no governo e em outras
áreas.
Aloysio voltou para São Paulo,
onde fez um longo périplo por redações, ora como editor de economia, ora como diretor de Redação. Sempre com o mesmo estilo,
a mesma flama.
Em uma de suas passagens por
esta Folha, travou memorável polêmica com os chamados "economistas de esquerda", inconformados porque em plena ditadura ele
escrevia e teimava, fiel a suas informações e interpretações, que a
economia brasileira estava se recuperando da crise do endividamento do início dos anos 80. Até
de "louco" foi chamado. E por escrito. O tempo provou que a razão
estava com ele.
Teve duas passagens breves por
Goiânia -outros reencontros,
outras tentativas de enxergar o
Brasil de outras formas, de outros
ângulos, outras abrangências. Como teve outras passagens por outras redações paulistas. E por uma
coluna semanal nesta Folha, que
marcou época por sua coragem,
independência, lucidez -apontando solitariamente desde o início, por exemplo, os erros que vão
encalacrando o atual governo federal.
Seu testamento talvez seja o pequeno e formidável livro sobre as
privatizações, em que, baseado no
seu fantástico acervo pessoal de
informações e na prodigiosa memória, dissecou os erros do processo, os favorecimentos inaceitáveis, os prejuízos para o país e para os cidadãos que, com seu esforço ao longo de décadas, construíram o patrimônio alienado.
A Fundação Cásper Líbero, onde ensinava jornalismo nos últimos tempos -para alegria de
tantos jovens-, em boa hora lhe
concedeu um título de doutor, pelo "notório saber". Era, de fato,
doutor em jornalismo, doutor em
economia, doutor em Brasil, doutor em dignidade.
Fará uma falta enorme. Como
jornalista. Como cidadão. Como
pai. Como professor. Como amigo alegre que gostava de cantar
nas noites boêmias. Muito raramente, até voltava ao piano da juventude, às vezes para acompanhar sua linda filha Beatriz, minha afilhada querida.
Acreditem ou não, eu lia jornal
na manhã de ontem quando me
assustei com um beija-flor perdido, que entrara de súbito e se debatia com os vidros da janela do
meu escritório em Goiânia. Foi
exatamente na hora em que o
Aloysio morreu. Era ele, tenho
certeza.
Washington Novaes é jornalista e ambientalista.
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