São Paulo, sábado, 22 de julho de 2000


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OPINIÃO

Aloysio Biondi, doutor em tudo

WASHINGTON NOVAES

Com Aloysio Biondi , desaparece um tipo raro de jornalista -competente, experiente, apaixonado, detentor de um acervo impressionante de informações sobre o Brasil e principalmente sobre a sua economia. Ao mesmo tempo, extremamente pessoal, distante de ideologias, refratário a grupos, poderes, conveniências, meios-termos. Nada disso o prendia nem ditava sua conduta jornalística -seguia apenas sua consciência, ao preço que fosse.
Sempre foi assim. Conheci-o em 1956, quando fiz teste para revisor da Folha da Manhã, mãe desta Folha de S.Paulo. Estranho que pareça, ele era sub-chefe da Divisão de Sucursais, Correspondentes e Representantes, à qual a revisão era subordinada. E era ele quem supervisionava os testes.
Um mês depois, chamou-me par a trabalhar como redator de notícias do interior do Estado -uma pedreira, já que nos obrigava a tornar interessantes informações passadas em meia dúzia de linhas pelos correspondentes. Aloysio era rigorosíssimo, mandava reescrever muitas vezes a mesma notícia -que tinha de sair clara, elegante, impecável, sem gerúndios.
Embora muito moço -tinha pouco mais de 20 anos nessa época-, já era apontado como prodígio desde sua cidade de origem, São José do Rio Pardo (260 km ao norte de SP), onde assombrou uma banca julgadora com seus conhecimentos sobre Euclydes da Cunha e "Os Sertões", na olimpíada literária que se realizava todos os anos em homenagem ao escritor, que viveu ali um tempo.
Na Folha também era considerado um prodígio. Mário Mazzei Guimarães, então redator-chefe, admirava-se com a qualidade dos editoriais que Aloysio produzia sobre temas do interior do Estado, revelando um conhecimento e maturidade que seriam sua marca pela vida afora.
Depois, correu mundo, muitas redações, voltou à Folha com Cláudio Abramo, mudou-se para o Rio, onde nos reencontramos, em uma das muitas vezes, na revista "Visão". Saímos de lá por causa de um atrito com o jovem então ministro da Fazenda, Delfim Netto, a quem Aloysio, como editor de economia, criticava duramente pela política de abertura desregrada das importações e endividamento externo. Já então o país sofria com essas coisas, Aloysio não se conformava, enfurecia-se com cada número que descobria.
Fomos, juntos, fundar uma revista econômica -"Fator"- que só durou três números, sufocada pelo Ato Institucional nº 5. Na capa do primeiro número, uma foto do ator Joel Barcellos com a boca entupida de dólares. Feroz, como o Aloysio, que a planejara.
Reencontramo-nos no "Correio da Manhã", onde fizemos juntos o "Diretor Econômico", um caderno diário, de muito êxito e vida breve, tais as resistências que levantou no governo e em outras áreas.
Aloysio voltou para São Paulo, onde fez um longo périplo por redações, ora como editor de economia, ora como diretor de Redação. Sempre com o mesmo estilo, a mesma flama.
Em uma de suas passagens por esta Folha, travou memorável polêmica com os chamados "economistas de esquerda", inconformados porque em plena ditadura ele escrevia e teimava, fiel a suas informações e interpretações, que a economia brasileira estava se recuperando da crise do endividamento do início dos anos 80. Até de "louco" foi chamado. E por escrito. O tempo provou que a razão estava com ele.
Teve duas passagens breves por Goiânia -outros reencontros, outras tentativas de enxergar o Brasil de outras formas, de outros ângulos, outras abrangências. Como teve outras passagens por outras redações paulistas. E por uma coluna semanal nesta Folha, que marcou época por sua coragem, independência, lucidez -apontando solitariamente desde o início, por exemplo, os erros que vão encalacrando o atual governo federal.
Seu testamento talvez seja o pequeno e formidável livro sobre as privatizações, em que, baseado no seu fantástico acervo pessoal de informações e na prodigiosa memória, dissecou os erros do processo, os favorecimentos inaceitáveis, os prejuízos para o país e para os cidadãos que, com seu esforço ao longo de décadas, construíram o patrimônio alienado.
A Fundação Cásper Líbero, onde ensinava jornalismo nos últimos tempos -para alegria de tantos jovens-, em boa hora lhe concedeu um título de doutor, pelo "notório saber". Era, de fato, doutor em jornalismo, doutor em economia, doutor em Brasil, doutor em dignidade.
Fará uma falta enorme. Como jornalista. Como cidadão. Como pai. Como professor. Como amigo alegre que gostava de cantar nas noites boêmias. Muito raramente, até voltava ao piano da juventude, às vezes para acompanhar sua linda filha Beatriz, minha afilhada querida.
Acreditem ou não, eu lia jornal na manhã de ontem quando me assustei com um beija-flor perdido, que entrara de súbito e se debatia com os vidros da janela do meu escritório em Goiânia. Foi exatamente na hora em que o Aloysio morreu. Era ele, tenho certeza.


Washington Novaes é jornalista e ambientalista.


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