São Paulo, segunda-feira, 22 de julho de 2002

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SAÚDE

Atendimento a pacientes com plano particular já chega a 22% do total em unidades ligadas a universidades públicas

Convênio gera até 51% da renda de hospital

Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem
Porta de entrada do setor de radiologia do Hospital das Clínicas de São Paulo; instituição atende conveniados de planos de saúde


FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

A "porta" para o atendimento de pacientes de planos e seguros de saúde particulares já está aberta nos principais hospitais públicos universitários do país, segundo avaliação da Abrahue (Associação Brasileira de Hospitais Universitários e de Ensino).
Sem o respaldo de lei específica e malvista pelo Ministério da Saúde, a participação do setor privado nesses hospitais de ponta alcança hoje até 51% do faturamento e 22% da assistência (internações e consultas, por exemplo).
No dia 27 de agosto, o Senado tenta, pela segunda vez desde 2001, votar projeto de lei que tenta regulamentar o assunto e reserva até 25% dos leitos para essa porta. Se aprovada, a proposta ainda terá de passar pela Câmara.
Para os dirigentes dos hospitais, a entrada de capital privado é a solução disponível para cobrir parte do déficit do SUS (Sistema Único de Saúde) e complementar salários de profissionais. "Por que consideramos que é justo? Um percentual significativo da população [40 milhões de brasileiros" já é coberto pelos planos de origem não-pública. É uma tendência generalizada dentro do objetivo de atendimento amplo. Cria condições para investir mais", diz Amâncio Paulino de Carvalho, diretor-geral do Hospital Clementino Fraga Filho, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e presidente da Abrahue.
A entidade reúne 157 hospitais de ensino e vinculados a universidades (45 subordinados ao MEC e ao Ministério da Saúde). Eles representam apenas 2,4% do total de hospitais que participam do SUS e responderam por 12,75% do total de 12.227.655 internações do sistema em 2001. No entanto, são os responsáveis por quase a metade dos procedimentos que exigem alta tecnologia e pessoal especializado e originaram, em 2001, 24% das despesas do setor público com internações.

Convênios bem-vindos
O presidente da Abrahue não tem uma avaliação precisa do número de hospitais que atendem convênios. As unidades têm situações jurídicas, administrativas e financeiras diferentes. Os dirigentes das principais são unânimes na defesa da entrada de pacientes do setor privado. "De 1977 a 1979, o Incor funcionava só com dinheiro público. Ele fazia seis cateterismos por dia, quatro cirurgias e não conseguia mais do que isso, apesar de ter sete salas de cirurgia. De cerca de 200 leitos, funcionávamos com 80", afirma José Antonio Franchini Ramires, diretor-geral do Incor (Instituto do Coração) do Hospital das Clínicas Universidade de São Paulo.
A unidade é uma das pioneiras na implantação do atendimento ao setor privado e responsável pelo maior faturamento com esse atendimento. Em 2001, os convênios geraram 28% das 11.695 internações. O Incor não forneceu dados do faturamento total. Informou apenas que a porta convênios responde por 51,28% dele.
O próprio diretor da Abrahue, no entanto, aponta as principais fragilidades do sistema.
"A principal desvantagem é que, para o hospital se organizar para atender o paciente de convênio, você precisa ter uma oferta específica a ele e de procedimentos. Isso significa trazer a desigualdade da sociedade para dentro do hospital? Não tenho dúvida. É um dos dilemas da vida."
De acordo com o diretor, o cálculo do real benefício financeiro da segunda porta é de difícil execução. Uma série de despesas de cada uma das portas (SUS e convênios) ocorrem em um caixa único. "No fim das contas, acho que o que entra só paga a estrutura", diz um reitor que é contra a dupla porta.
No hospital vinculado à UFMG, dos R$ 6,2 milhões faturados pelos convênios (17% do total do faturamento), 60% são consumidos só com os gastos diretos (materiais, limpeza, luz etc.).
Por outro lado, há o valor agregado pela manutenção de profissionais, que dificilmente permaneceriam nos hospitais se não ganhassem mais dos convênios.

Desigualdade
Para Lenir Santos, procuradora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas, que não pratica a dupla porta), o argumento de "falta de recursos" não justifica o atendimento melhor ao setor privado. "Não é possível usar esses argumentos para ferir princípios constitucionais de igualdade. Não falta dinheiro na segurança? Então vamos cobrar também?"
"Haveria possibilidade de um hospital público, mantido pelo SUS, instituir um sistema paralelo (...) dando preferência ao paciente abastado (...)?", questiona o Ministério Público do Estado de São Paulo em recurso dirigido ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), instância da Justiça em Brasília que julga recursos especiais estaduais. Desde 1999, o Ministério Público luta contra a dupla porta no Hospital das Clínicas da USP. O Incor não é alvo. A diretoria do HC não comenta o assunto.
A Justiça de São Paulo entendeu que o dinheiro captado dos convênios ajuda "a amainar a carência de recursos públicos(...)" e que "o atendimento mais rápido aos que pagam ou se dispõem a pagar (...) existe porque a fila [do setor privado" é (...) menor".
O recurso ao STJ, que só deve ser julgado no próximo mês, coloca um argumento principal contra a "segunda porta": artigos da lei federal 8.080, a Lei Orgânica da Saúde, que assegura o acesso universal e igualitário aos serviços do SUS, previsto na Constituição.
"Nota ser insustentável que um hospital público, com patrimônio público, servidores públicos, preste o serviço primeiro para quem paga, sem qualquer base legal", diz o texto do recurso.



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