São Paulo, terça-feira, 22 de agosto de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARILENE FELINTO

Crime é única via de ascensão social na era FHC

A gente pensa que não, mas dez anos com o mesmo grupo de homens no comando de um país como este fazem a diferença. Em breve (2002) teremos oito anos de governo FHC -governo que nunca nos tratou como humanos de fato. Basta reparar que os ladrões e assassinos formados nesse período são, com espantosa frequência, dotados de uma desumanidade e de um embrutecimento inéditos.
Basta reparar como piorou, na era FHC, o tratamento dado aos presos, aos menores infratores e aos meninos de rua -são tratados como animais que, na primeira chance, não vacilam em nos tratar também como animais.
Há mesmo algo de animalesco em ser assaltado a mão armada -a pessoa se sente na pré-história da humanidade, um simples objeto de caça, alcançado desprevenido pelo bandido, homem de uma tribo qualquer mais armada do que a sua, ele que saiu de casa (de sua favela-caverna) para caçar, que está na rua para caçar, e que vê na carne da vítima, no crime, o motivo não de sua sobrevivência imediata, mas de uma possibilidade de ascensão social.
O bandido embrutecido pela era FHC não rouba para comer, rouba para obter o amontoado de penduricalhos burgueses que sua vítima ostenta: o carro, o tênis, o relógio, o celular, o cartão do banco, o produto da globalização de um mundo em que ele, bandido, sabe que não conseguirá se inserir. Ele mata facilmente por um desses objetos.
Quem já não foi roubado, assaltado, quem não teve um parente, um amigo em situações piores, mortos, sequestrados, assassinados? É esse o cotidiano da era FHC -governo que abriu um fosso intransponível entre o miserável e o rico, entre o pobre e o classe média, mas que se gaba de ter inserido o país na economia globalizada, na informatização, na satelitização, na estabilidade.
Os dois homens que entraram encapuzados e armados na minha casa de praia há duas semanas estavam a milhares de anos-luz de distância social de mim. Eram diferentes dos ladrões que também entraram na minha casa de infância em Recife, há 30 anos, ladrões de galinhas desarmados, tão pobres quanto nós, e dos quais a gente se defendia pendurando panelas atrás das portas.
Os ladrões da praia eram de uma pobreza diversa, uma pobreza que assassina. Uma das armas brilhava toda prateada na mão deles. Toda a família ficou rendida, deitada no chão da sala, da avó ao menino mais novo. E seriam mortos por qualquer deslize.
Entreguei tudo o que pediram. Eles levaram dos aparelhos celulares às peças de carne que tínhamos comprado para um churrasco em família. Foram 40 minutos de inferno típico da era FHC. Também notei o quanto eu mesma piorei nesse período. Quando os ladrões se foram, senti minha primeira vontade de matar um ser humano -de raiva pelo pânico, pela covardia.
-Tá me roubando por quê, fdp? -eu cuspiria, perversa, na cara do bandido. -Eu já fui tão pobre quanto você e nunca roubei, nunca matei, fdp.
E só recuei na minha fúria vingativa quando pensei "macro", como se diz na era FHC -de nada adianta matar esse ladrão se não se elimina o outro, a causa de tudo, o colarinho branco protegido pelos homens da era FHC, o banqueiro espoliador, o juiz ladrão, o industrial ganancioso, o senador, o deputado corrupto.
A gente pensa que não, mas dez anos fazem a diferença. Morrem milhares de pessoas vítimas da violência social nos semáforos, nas casas, nas ruas, nas favelas e nos presídios -enquanto as autoridades insistem em festejar as "baixas taxas de juros", ignorando as taxas de morte, as verdadeiras baixas dessa guerra covarde.


E-mail - mfelinto@uol.com.br



Texto Anterior: Chefe de equipe de tiro defende reformulação
Próximo Texto: Há 50 anos
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.