São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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DROGAS

Ex-empresário que perdeu tudo por causa da bebida, Marcílio Cavalcanti dirige a entidade e é contra ações repressivas

Rede de usuários defende direito ao uso

ANTÔNIO GOIS
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

Em geral, a imagem do usuário de drogas está associada a alguém que esconde que faz uso de substâncias ilícitas ou que está em tratamento para deixar de usar drogas lícitas ou ilícitas.
Para quebrar essa imagem e discutir novas formas de abordagem do tema, foi criada neste ano uma rede nacional de usuários de drogas.
Eles defendem o direito de usar drogas e criticam as linhas de combate ao problema que apontam, exclusivamente, para o abandono dessa prática.
Acreditam que as políticas públicas têm que visar também aqueles que não querem parar, mas que podem, ao menos, reduzir possíveis danos.
A Folha entrevistou o coordenador-geral da rede, Marcílio Cavalcanti, 43. Ex-empresário que perdeu tudo por causa da bebida, ele se recuperou e virou ativista de direitos humanos ao fundar a organização não-governamental Se Liga, de Pernambuco, entidade que tem o apoio do Ministério da Saúde e reúne usuários de álcool e outras drogas do Estado.
"Se for usar, não abuse" é um dos slogans das campanhas da Se Liga. Veja trechos da entrevista de Cavalcanti, feita em Brasília, após o seminário Mídia e Drogas, realizado na semana passada pela Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) e pelo Programa Nacional de DST/ Aids do Ministério da Saúde.
 

Folha - Por que criar uma rede nacional de usuários de drogas?
Marcílio Cavalcanti -
Porque chegamos à conclusão de que entidades e técnicos falavam em nosso nome no momento de discutir políticas públicas. Não precisamos que ninguém fale em nosso nome, até para mostrar para a sociedade que o usuário de drogas é capaz de produzir, viver e ter uma vida decente.

Folha - Hoje, há várias associações e grupos que ajudam quem quer parar de usar drogas. Qual a diferença entre vocês e eles?
Cavalcanti -
Nossa proposta é ajudar também pessoas que não querem parar, mas que se dispõem a reduzir os danos desse uso. Trabalhamos na linha da redução de danos. Tentamos convencer, por exemplo, um usuário a não compartilhar uma seringa ou um cachimbo de crack para evitar contaminação. A abordagem é feita também com drogas lícitas. Se uma pessoa bebe uma garrafa de uísque todo dia e não quer parar, mas dirige sempre embriagada, tentamos convencê-la a pegar um táxi.

Folha - O correto não é defender que as pessoas larguem totalmente as drogas?
Cavalcanti -
Entendemos que a droga, por si só, não é boa nem má. Depende da relação que o sujeito estabelece com ela. Os opiáceos, por exemplo, são usados como analgésicos ou por pessoas que querem se entorpecer. É um exemplo de que uma mesma droga que cura pode se transformar num problema para o usuário. Acreditamos que é um direito da pessoa dispor livremente de seu corpo e de sua mente. Eu posso até alertá-la do risco do uso de uma determinada droga, mas não cabe a mim julgar o que é melhor ou não para ela.

Folha - Isso não é apologia ao uso de drogas?
Cavalcanti -
A política de redução de danos não deve ser confundida com apologia. Não defendemos o uso, mas o direito de as pessoas usarem ou não. Nós, por exemplo, não distribuímos panfletos que falam de redução de danos ao público que não usa drogas porque isso pode ser confundido com um estímulo. Nossa campanha é para que pessoas que usam e que querem continuar usando evitem prejuízos maiores.

Folha - Não é irresponsável falar em redução de danos sabendo que muitos usuários de drogas podem se tornar dependentes e ter sérios problemas?
Cavalcanti -
Eu fui dependente grave de álcool, fiquei dois anos em tratamento e tive que ser internado sete vezes. Estou há nove anos sem beber, mas sou um ex-empresário que perdeu tudo o que tinha na vida por causa da bebida. Por isso, posso dizer que estou autorizado a dizer isso tudo porque sofri bastante. Além disso, há dados epidemiológicos que mostram que apenas 10% ou 15% da população se torna dependente de drogas lícitas ou ilícitas.

Folha - Você tem uma filha de 17 anos. Não teme que seu comportamento a influencie?
Cavalcanti -
Uma estratégia da redução de danos é tentar adiar ao máximo o início do uso de drogas pelos jovens. Não tenho nenhuma dúvida de que a maioria dos jovens vai experimentar algum tipo de droga lícita ou ilícita. A rede brasileira de usuários ainda está discutindo uma carta de princípios e vai ter uma posição, mas, em Pernambuco, já somos contra o uso de drogas por menores de idade.

Folha - Atualmente, o governo federal apóia iniciativas de redução de danos pelo Ministério da Saúde, mas tem uma Secretaria AntiDrogas com foco na repressão e prevenção ao uso. Isso não é uma contradição?
Cavalcanti -
Acho que sim. O Ministério da Saúde, desde o governo passado, avança na política de redução de danos, mas me parece contraditório defender uma política mais tolerante com o usuário e ter uma secretaria com o nome antidroga.

Folha - O usuário que compra de traficantes não é culpado por alimentar essa violência?
Cavalcanti -
Culpar o usuário pela violência é uma maneira de esconder o verdadeiro problema. O que gera violência não é a droga ou a pobreza, mas a desigualdade social. Para acabar com o tráfico, legaliza-se a droga.

Folha - Como legalizar?
Cavalcanti -
Defendemos a legalização, mas com regulamentação. Não estamos falando em liberar a maconha e permitir, por exemplo, que eu vá fumar numa escola. Legalizar por legalizar só vai aumentar o consumo e as conseqüências do uso.

Folha - Mas, mesmo com controle, não há o risco de aumento do consumo?
Cavalcanti -
Há essa possibilidade, mas a gente só vai saber se isso realmente vai acontecer a partir do momento em que implementarmos essa política. Pode-se dizer que o consumo de álcool é elevado, mas ele é alto também por causa da publicidade e do estímulo social à bebida.
Na nossa avaliação, o maior dano causado ao usuário de drogas está na ilegalidade. Pelo fato de serem ilegais, o jovem tem que se vincular à marginalidade para ter acesso a elas. O fato de ser ilícito também afasta a possibilidade de diálogo com os pais. Há também dezenas de casos de overdose em que as pessoas morrem por medo dos colegas de as levar ao hospital.


O repórter Antônio Gois viajou a convite do Ministério da Saúde e da Andi para participar do seminário Mídia e Drogas


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