São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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DANUZA LEÃO

Será?

Na vida dos outros, tudo sempre dá certo.
Quando você pergunta como vai a família, a resposta é "ótima", seguida de um "graças a Deus". A casa está sempre perfeita, o trabalho maravilhoso, a viagem foi fantástica, a saúde divina e de dinheiro ninguém fala, nunca. Ou porque é demais ou porque é de menos, esse é um assunto em que não se toca.
Mas às vezes dá para pensar: será que problemas só acontecem na nossa vida? Ficou combinado que não se deve falar deles nunca; para ser uma pessoa bem aceita socialmente é fundamental estar sempre de altíssimo astral, eternamente de bom humor e agir como se a vida fosse uma eterna canção.
Problemas? Mas que problemas? Nós brigamos com nossos filhos, nos aborrecemos com nossos amigos, esquentamos nossas cabeças no trabalho, fazemos viagens em que tudo dá errado, passamos fome e paramos de fumar em benefício de uma vida (futura) mais sadia. Em benefício de uma convivência agradável -sejamos francos: para sermos mais queridos e aceitos-, dizemos que tudo está indo maravilhosamente bem e quando chegamos em casa à noite, depois de um dia de boca trancada em relação ao que realmente está no nosso coração e no nosso fígado, corremos o risco de enfartar antes de entrar no elevador. E isso é vida? Pois parece que é.
Mas lá um dia você conhece uma pessoa legal que tem o cuidado básico de desligar o celular quando entra no restaurante, que ouve você com atenção, até mesmo com interesse, e você acaba falando mais do que o que se convencionou chamar de socialmente aceitável. Falando mais claro: você se abre, o que não acontece com frequência.
As grandes qualidades que sempre procurou num homem eram, não exatamente nessa ordem, a inteligência, um físico atraente, uma certa estabilidade na vida, charme, educação, alguma cultura, caráter, essas coisas. De preferência que não tivesse sido casado antes, que tivesse um futuro, que fizesse algum esporte, que soubesse falar sobre assuntos diversos, que já tivesse viajado, que conhecesse as comidas e os vinhos, que não se vestisse na moda, que resistisse a olhar para as maravilhosas mulheres que passassem pela sua frente e, claro, que fosse louco por ela (e ela por ele).
Desse homem, para quem abriu o coração, não sabia nada. Não tinha a menor idéia se ele tinha alguma das características que para ela eram essenciais num namorado ou mesmo num amigo. Mas foi tão bom, tão bom, que ela não conseguiu esquecer. Afinal, o que tinha ele de tão especial, que o fazia diferente e melhor do que todos?
Demorou, mas descobriu: ele era um homem sensível. Ficou pensando que há muito, muito tempo, não conversava com uma pessoa assim e que há muito, muito tempo, nem lembrava que existiam pessoas sensíveis.
E achou a vida curiosa: como podem certas coisas, que já foram tão fundamentais, como a sensibilidade, passar de moda e a gente até esquecer que elas um dia existiram?
Será que um filme de Chaplin ainda comove alguém?

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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