São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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COMPORTAMENTO

Aposentado retomou a vida profissional para poder assegurar lar e cuidados para pelo menos 78 animais abandonados

Famílias carentes ganham "bolsa-cão"

DA REPORTAGEM LOCAL

O que levaria um executivo aposentado da multinacional IBM a abandonar seu "ócio ativo maravilhoso" e voltar à ativa depois de mais de 30 anos de trabalho? "O destino genético", afirma o engenheiro Alvaro Salla, 60. No caso dele, a retomada da vida profissional ocorreu para que pudesse assegurar lar e cuidados para pelo menos 78 cães abandonados.
Desde que se aposentou, há três anos, Salla dá entre R$ 80 e R$ 100 mensais por cachorro de rua adotado a um total de 12 famílias carentes em São Paulo e em Brasília, que ele acaba identificando em suas andanças pelas cidades ou com a ajuda de amigos.
"Dessa forma, ajudo um pouco a resolver dois problemas de uma vez [o dos bichos e o das pessoas" e também me ajudo. Não consigo mais olhar para um animal na rua e virar o rosto, mas tenho um apartamento pequeno, onde não há espaço para acolher todos eles", afirma.
"Desde cedo me incomodava ver animais e crianças abandonadas porque eles são indefesos e não têm culpa de nada. Mas, por muito tempo, embora sofresse, fiz muito pouco. Quando me aposentei, tinha tempo e dinheiro para fazer alguma coisa", completa.
Mas, em pouco tempo, a "bolsa-cão" já estava consumindo R$ 10 mil, o dobro da aposentadoria de Salla. A saída foi voltar ao mercado como consultor e professor para sustentar o que ele mesmo define como um "vício".
"Em muitas famílias, o dinheiro que dou é a única fonte de renda. Comecei também a ajudar os chamados "cachorreiros", que pegam os animais na rua para cuidar, mesmo não tendo dinheiro. Eles acabaram dependendo de mim", declara Salla.

Compensações
Embora não possa ser considerada uma "cachorreira", a faxineira Núbia Maria Duarte Ferreira, 56, é uma das que não pode ver animais abandonados na rua.
"Queria ter um lugar enorme para onde levar todos eles." Como não tem, ela cuida de Doly, Nego e Miquelina. Pelos dois primeiros, recebe ajuda da "bolsa-cão" de Salla, que paga o aluguel da casa onde Ferreira mora com a irmã, o cunhado e dois sobrinhos no Brás (região central de São Paulo).
As dificuldades para cuidar dos animais adotados são compensadas, diz, pela companhia e carinho que eles dão.
"Sem eles, não teria aguentado a morte de meu marido [há quatro meses"", conta. "Depois que o meu marido morreu, todos sofremos muito. O Nego se enfiou embaixo da cama por três dias", completa.
"Minha irmã reclama um pouco porque eles não querem ficar do lado de fora, mas não tem jeito. Os cachorros são os verdadeiro donos da casa", diz sorrindo a faxineira, que não tem filhos.

Canil e ONG
Com o objetivo de ampliar o universo de animais retirados das ruas, Salla e "uma amiga cachorreira" estão construindo, em Juquitiba (78 km da capital), um canil para até 200 cães abandonados, com espaço para banho de sol e divisões espaçosas. A previsão é que o local receba seus primeiros hóspedes em dois meses.
Os planos vão ainda mais longe. Ao lado de duas veterinárias de Brasília -para onde viaja frequentemente a trabalho-, Salla tem a idéia de criar uma ONG para prestar atendimento médico (vacinação, vermifugação e castração) a animais de favelas e bairros pobres da capital federal.
"Queremos montar uma pet shop e reverter todo o lucro dela para a compra e manutenção de uma Kombi equipada como um posto veterinário móvel", diz.
Para os que fazem críticas aos defensores dos animais em um país em que milhares de pessoas vivem abaixo da linha da miséria, Salla responde: "O argumento de que não se deve fazer uma coisa porque não se faz outra é um absurdo. É uma grande desculpa para a inércia. Se você fizer o que está ao seu alcance, a vida de todo mundo fica melhor".
(MARIANA VIVEIROS)


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