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São Paulo, quinta-feira, 23 de janeiro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

Foste, fostes, deixaste, deixastes...

"Quando olhaste bem nos olhos meus e o teu olhar era de adeus..." Lembrou, caro leitor? São os versos iniciais da antológica "Atrás da Porta" (música de Francis Hime e letra de Chico Buarque), indelével na interpretação de Elis Regina.
Nessa letra, Chico emprega a segunda pessoa do singular ("tu") em todas as passagens em que o narrador (uma mulher) se dirige ao interlocutor. A segunda pessoa, por sinal, é marca de muitas das letras de Chico. Uma delas é a de "Eu te Amo" (com música de Tom Jobim), incluída na prova de português da primeira fase do último vestibular da Fuvest. "Se entornaste a nossa sorte pelo chão...", diz um dos versos.
Constante objeto de questões que avaliam o conhecimento do registro culto da língua, muitas vezes a segunda pessoa deixa em dúvida quem a quer empregar. O caso mais comum certamente se dá no pretérito perfeito do indicativo. Não são poucas as letras de canções populares em que se lê ou ouve algo como "Tu te fostes de mim". Na língua padrão, a forma adequada é "foste" ("Tu te foste de mim"). A forma "fostes" é da segunda do plural ("vós").
Essa confusão se explica. Em oito dos nove tempos verbais simples, a segunda pessoa do singular termina em "s": "tu és", "tu eras", "tu foras", "tu serás", "tu serias", "se tu fosses", "se tu fores". A única que não termina em "s" é justamente a do pretérito perfeito do indicativo: "tu foste", "tu olhaste", "tu entornaste", "tu saíste", "tu beijaste", "tu quiseste" etc.
Não é difícil entender que o falante é induzido pela presença do "s" em oito das nove formas a incluí-lo na flexão do pretérito perfeito. É aí que entra o papel da escola e do professor. Este precisa saber explicar aos alunos toda a mecânica do processo. Não é preciso decorar; é preciso entender.
Um exemplo da confusão entre "foste" e "fostes" ("deixaste" e "deixastes", "fizeste" e "fizestes" etc.) vem da minissérie "A Casa das Sete Mulheres", exibida atualmente pela Globo. Na peça, em que se emprega linguagem de época, volta e meia os atores tropeçam no emprego das formas verbais e pronominais.
Essa observação não advém de puritanismo linguístico ou coisa que o valha. O caso é muito simples: ou se faz ou não se faz. No capítulo da última terça, uma das personagens manteve um "diálogo" com o marido, já morto. Perdi a conta dos "deixastes", "foste", "dissestes" e "esqueceste" (sim, ora com "s", ora sem ele) empregados no discurso. À atriz (brilhante, por sinal) faltou orientação para que esse desagradável deslize fosse evitado.
Não é caso único, é bom que se diga. Outros atores já derraparam nessa e em outras particularidades da questão. O emprego de "teu" e "seu" na mesma fala, sem que se mude o interlocutor, é uma dessas particularidades.
Convém lembrar que, na época em que se passam os fatos da minissérie (século 19), a forma de tratamento era, no mínimo, marca de hierarquia ou do grau das relações entre as pessoas (intimidade, distância, respeito etc.). Em Portugal, por sinal, a forma de tratamento (segunda ou terceira pessoa do singular) ainda hoje carrega essas marcas. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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