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PASQUALE CIPRO NETO
Foste, fostes, deixaste, deixastes..."Quando olhaste bem
nos olhos meus e o teu
olhar era de adeus..." Lembrou,
caro leitor? São os versos iniciais
da antológica "Atrás da Porta"
(música de Francis Hime e letra
de Chico Buarque), indelével na
interpretação de Elis Regina.
Nessa letra, Chico emprega a segunda pessoa do singular ("tu")
em todas as passagens em que o
narrador (uma mulher) se dirige
ao interlocutor. A segunda pessoa, por sinal, é marca de muitas
das letras de Chico. Uma delas é a
de "Eu te Amo" (com música de
Tom Jobim), incluída na prova de
português da primeira fase do último vestibular da Fuvest. "Se entornaste a nossa sorte pelo
chão...", diz um dos versos.
Constante objeto de questões
que avaliam o conhecimento do
registro culto da língua, muitas
vezes a segunda pessoa deixa em
dúvida quem a quer empregar. O
caso mais comum certamente se
dá no pretérito perfeito do indicativo. Não são poucas as letras de
canções populares em que se lê ou
ouve algo como "Tu te fostes de
mim". Na língua padrão, a forma
adequada é "foste" ("Tu te foste
de mim"). A forma "fostes" é da
segunda do plural ("vós").
Essa confusão se explica. Em oito dos nove tempos verbais simples, a segunda pessoa do singular
termina em "s": "tu és", "tu eras",
"tu foras", "tu serás", "tu serias",
"se tu fosses", "se tu fores". A única que não termina em "s" é justamente a do pretérito perfeito do
indicativo: "tu foste", "tu olhaste", "tu entornaste", "tu saíste",
"tu beijaste", "tu quiseste" etc.
Não é difícil entender que o falante é induzido pela presença do
"s" em oito das nove formas a incluí-lo na flexão do pretérito perfeito. É aí que entra o papel da escola e do professor. Este precisa
saber explicar aos alunos toda a
mecânica do processo. Não é preciso decorar; é preciso entender.
Um exemplo da confusão entre
"foste" e "fostes" ("deixaste" e
"deixastes", "fizeste" e "fizestes"
etc.) vem da minissérie "A Casa
das Sete Mulheres", exibida
atualmente pela Globo. Na peça,
em que se emprega linguagem de
época, volta e meia os atores tropeçam no emprego das formas
verbais e pronominais.
Essa observação não advém de
puritanismo linguístico ou coisa
que o valha. O caso é muito simples: ou se faz ou não se faz. No
capítulo da última terça, uma das
personagens manteve um "diálogo" com o marido, já morto. Perdi
a conta dos "deixastes", "foste",
"dissestes" e "esqueceste" (sim,
ora com "s", ora sem ele) empregados no discurso. À atriz (brilhante, por sinal) faltou orientação para que esse desagradável
deslize fosse evitado.
Não é caso único, é bom que se
diga. Outros atores já derraparam nessa e em outras particularidades da questão. O emprego de
"teu" e "seu" na mesma fala, sem
que se mude o interlocutor, é uma
dessas particularidades.
Convém lembrar que, na época
em que se passam os fatos da minissérie (século 19), a forma de
tratamento era, no mínimo, marca de hierarquia ou do grau das
relações entre as pessoas (intimidade, distância, respeito etc.). Em
Portugal, por sinal, a forma de
tratamento (segunda ou terceira
pessoa do singular) ainda hoje
carrega essas marcas. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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