São Paulo, segunda-feira, 23 de fevereiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ABRE-ALAS

Os enredos do Carnaval de São Paulo

CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA

Desta vez, esperava que os enredos fossem diferentes. Afinal, os 450 anos de São Paulo eram o tema oficial do Carnaval paulistano. Todos os desfiles descreveriam um aspecto da cidade, contariam sua história e celebrariam suas glórias. Quem sabe, graças a essa referência forçada, os enredos de 2004 falassem nossa língua, fossem compreensíveis por todos. Não foi assim.
Claro, sei que o samba da avenida não é MPB: o enredo é escrito para um coro que deve empolgar a multidão. Mas será que é uma razão suficiente para que o modelo de estilo dos enredos seja sempre aquela poesia em que o poeta acha que é luz e guia do povo? Leia Castro Alves e, a cada estrofe, pergunte-se: isto poderia ser um samba-enredo? Pois é, freqüentemente poderia.
O samba-enredo adota teimosamente a retórica da poesia romântica. O folião deve memorizar, cantar e supostamente entender versos duvidosos que parecem citações de Vicente de Carvalho ou de José de Alencar, em que não pára de "raiar" (impessoal: raia, assim como chove ou faz calor), surgem alvoradas de alegria, a vitória se transforma em verdade (sei lá por que), o amor extravasa e por aí vai.
No samba-enredo, os clichês românticos servem para assinalar que o estilo é poético e elevado: se a letra é difícil, é sinal que o tema tratado é nobre. Ao mesmo tempo, esses clichês são completamente afastados do uso corrente da língua. Com isso, os versos são batidos como um velho chiclete e, mesmo assim, incompreensíveis.
Há um exemplo perfeito (e, quem sabe, originário) dessa estranha situação em que uma multidão canta letras que mal entende, mas cuja retórica impenetrável deveria atestar a solenidade e a seriedade do assunto. O exemplo é o poema de Duque Estrada que fornece a letra do hino nacional.
Alguns dirão que o compositor de enredos consegue uma façanha: força o povo a usar metáforas sofisticadas e difíceis. Não é um sucesso cultural?
Pode ser, mas minha impressão é outra. Nos foliões cantando letras que ninguém entende direito, não vejo nenhum progresso, apenas a manutenção de uma forma inquietante de poder: dancem e cantem, que o sentido das letras continuará lhes escapando. Lembra? A hierarquia conservadora da Igreja Católica queria que a missa continuasse em latim.
Deste ponto de vista, o enredo mais decepcionante foi o da Gaviões da Fiel: um desfile bonito, um samba empolgante, mas uma letra vaga e abstrata que só ganhava sentido na hora de declarar fidelidade ao time do Corinthians (o que é ótimo, mas um pouco marginal ao tema). O melhor enredo foi o da Águia de Ouro, que, menos ambicioso, conseguiu apresentar a gastronomia de São Paulo como símbolo da diversidade cultural de nossa cidade e Ana Maria Braga como emblema de nossa vontade de viver.

E-mail - ccalligari@uol.com.br


Texto Anterior: Rosas de Ouro e Vai-Vai são favoritas em SP
Próximo Texto: Confete - Inclusão: Escolas de samba abrem alas para deficientes
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.