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ABRE-ALAS
Os enredos do Carnaval de São Paulo
CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA
Desta vez, esperava que os
enredos fossem diferentes.
Afinal, os 450 anos de São Paulo
eram o tema oficial do Carnaval
paulistano. Todos os desfiles descreveriam um aspecto da cidade,
contariam sua história e celebrariam suas glórias. Quem sabe,
graças a essa referência forçada,
os enredos de 2004 falassem nossa
língua, fossem compreensíveis
por todos. Não foi assim.
Claro, sei que o samba da avenida não é MPB: o enredo é escrito
para um coro que deve empolgar
a multidão. Mas será que é uma
razão suficiente para que o modelo de estilo dos enredos seja sempre aquela poesia em que o poeta
acha que é luz e guia do povo? Leia
Castro Alves e, a cada estrofe, pergunte-se: isto poderia ser um
samba-enredo? Pois é, freqüentemente poderia.
O samba-enredo adota teimosamente a retórica da poesia romântica. O folião deve memorizar, cantar e supostamente entender versos duvidosos que parecem citações de Vicente de Carvalho ou de José de Alencar, em que não pára de "raiar" (impessoal:
raia, assim como chove ou faz calor), surgem alvoradas de alegria,
a vitória se transforma em verdade (sei lá por que), o amor extravasa e por aí vai.
No samba-enredo, os clichês românticos servem para assinalar
que o estilo é poético e elevado: se
a letra é difícil, é sinal que o tema
tratado é nobre. Ao mesmo tempo, esses clichês são completamente afastados do uso corrente
da língua. Com isso, os versos são
batidos como um velho chiclete e,
mesmo assim, incompreensíveis.
Há um exemplo perfeito (e,
quem sabe, originário) dessa estranha situação em que uma multidão canta letras que mal entende, mas cuja retórica impenetrável deveria atestar a solenidade e a
seriedade do assunto. O exemplo
é o poema de Duque Estrada que
fornece a letra do hino nacional.
Alguns dirão que o compositor
de enredos consegue uma façanha: força o povo a usar metáforas sofisticadas e difíceis. Não é
um sucesso cultural?
Pode ser, mas minha impressão
é outra. Nos foliões cantando letras que ninguém entende direito,
não vejo nenhum progresso, apenas a manutenção de uma forma
inquietante de poder: dancem e
cantem, que o sentido das letras
continuará lhes escapando. Lembra? A hierarquia conservadora
da Igreja Católica queria que a
missa continuasse em latim.
Deste ponto de vista, o enredo
mais decepcionante foi o da Gaviões da Fiel: um desfile bonito,
um samba empolgante, mas uma
letra vaga e abstrata que só ganhava sentido na hora de declarar fidelidade ao time do Corinthians
(o que é ótimo, mas um pouco
marginal ao tema). O melhor
enredo foi o da Águia de Ouro,
que, menos ambicioso, conseguiu
apresentar a gastronomia de São
Paulo como símbolo da diversidade cultural de nossa cidade e
Ana Maria Braga como emblema
de nossa vontade de viver.
E-mail - ccalligari@uol.com.br
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