São Paulo, sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

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DEPOIMENTO

"Foi como se eu tivesse sido acordado por um tsunami"

EDGARD ALVES
DA REDAÇÃO

O MUNDO GIROU rápido na cabeça, como se eu tivesse sido acordado por um tsunami. Eram 4h da madrugada, de uma das noites quentes deste verão. Grogue de sono, despertado pelo telefone, corri para a sala para atender.
Primeiro, o sinal de ligação a cobrar aumentou a tensão. Afinal, em casa, é inusual ligação nesse horário. A cobrar, coisa boa não deve ser. O motivo deveria ser grave, notícia ruim.
Bêbado de sono, a zonzeira faz o sinalzinho da operadora parecer eterno, embora não passe de pouquíssimos segundos. A sensação é que tudo está errado, confuso. Aí vem a tortura, em dois atos.
"Pai, fui seqüestrado. Fui seqüestrado, pai. Me salva, pai."
Naquela confusão mental, sem nada entender, e querendo entender, a reação de pai, distante dos filhos em viagem.
"Caaaalma, filho! Caaaalma, filho! Leandro, caaaalma filho! Leandro, o que aconteceu? Onde você está? Fique calmo e converse comigo."
Os golpistas já tinham um nome. Não sei dizer se usaram.
Certa vez li algo que contava como teria sido o susto de um japonês que apertou o botão da descarga do vaso sanitário de sua casa no exato momento em que a bomba explodiu em Hiroshima. Entendi qual teria sido o susto do cidadão.
A partir daí começou o segundo ato. O bandido, com voz de bandido de cinema, entra na linha. "Estamos com o seu filho e queremos dinheiro para soltá-lo. Nosso alvo não era ele, era o filho de um empresário, foi engano, mas seu filho viu nosso rosto. Agora, precisamos de dinheiro. Quanto você pode dar? Qual é a marca do seu carro? E o da sua mulher?"
E as ameaças seguiram: "Não fale com mais ninguém. Se ligar para a polícia, matamos. Estouramos os miolos dele. Não temos tempo. Fale quanto você pode dar."
Diante da negativa da disponibilidade de fundos, as ameaças, repetidas inúmeras vezes e em locução rápida, sobem o tom. "Vamos estourar o miolo dele. Quanto você pode dar? Vamos matá-lo."
Negociei, ganhando tempo, até acordar o vizinho do apartamento ao lado. Enquanto ouvia os gritos do outro lado da linha, escrevi que solicitasse ajuda da polícia. A resposta da PM, após breve relato do vizinho: "Se foi ligação a cobrar é trote; tem acontecido muito. Não podemos grampear a ligação. Com certeza, é trote".
Mesmo assim, já ciente da informação da PM, mantive um pouco mais a negociação. E a ligação foi encerrada com as instruções: "Arrume o dinheiro: R$ 10 mil. Isso você pode. Às 10h ligaremos para acertar o que deve ser feito. Não fale com a polícia nem com ninguém senão ele morre."
Ainda nervoso, tentei contato com meu filho, em vão naquele momento, mas respirei aliviado quando soube que a namorada havia falado com ele cinco minutos antes, ou seja, quando os golpistas ainda estavam na linha.
No horário marcado, o telefone tocou mas não atendi.
Mais três horas e, com o sinal do telefone restabelecido no local onde meu filho estava, é que senti, de fato, o significado verdadeiro de alívio: "Pai, tá tudo bem por aqui. Curtindo e aprendendo. E o Corinthians, pai, o Nilmar já estreou?"
Nem respondi. Outro assunto desagradável seria demais para meu combalido coração.


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