São Paulo, sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

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BARBARA GANCIA

Adianta discutir segurança pública?


Não existe nenhuma forma de comunicação entre a comunidade e a força policial designada para protegê-la


JÁ VOU AVISANDO: hoje escrevo apenas e tão somente para desopilar o fígado.
Como tenho ciência de que nada do que possa ser dito ou esgoelado aqui vai reverter o estado de degradação gerado pela violência urbana, só me resta usar este espaço para lamentar a situação atual.
O Carnaval de São Paulo terminou em tragédia com a morte da jovem auxiliar Maria Cícera Santos Portela, supostamente baleada pelo PM José Álvaro Pereira da Silva enquanto assistia da sacada de um sobrado a passagem do bloco "Carnaval do Ovo", na favela São Remo, no Jaguaré, bairro da zona oeste da cidade.
Veja como são as coisas. Guerras de ovos, como aquela que motivou os soldados da PM a entrarem atirando na favela São Remo, eram comuns entre as crianças do meu bairro, o Jardim Paulista, na minha infância. A "munição" nós roubávamos em casa mesmo, e tréguas só eram estabelecidas quando alguma mãe se dava conta de que o estoque de ovos da sua geladeira havia sido pilhado.
Lembro de que os ovos eram uma arma valiosa. Podiam servir para humilhar o "inimigo", mandando-o mais cedo para o banho, ou para resolver questões pendentes. Como, por exemplo, as diferenças entre um cão da vizinhança e eu.
Explico: todos os dias eu enveredava de bicicleta pelo mesmo percurso. Saía de casa, descia a rua em que morava e virava à direita na avenida hoje conhecida por Juscelino Kubistchek, que a gente chamava de "avenida nova" ou "do córrego".
Assim que eu fazia a curva, um cachorro pastor alemão que morava numa casa da esquina me surpreendia com seus latidos e eu caía da bicicleta. Tarde após tarde, eu só ia lembrar da existência do maldito quadrúpede quando já estava com o traseiro grudado no chão.
Até o dia em que me enchi e, em vez de amaldiçoar minha própria distração, corri para casa e enchi os bolsos com todos os ovos que encontrei na geladeira. Lembro que, depois de descarregá-los sobre o animal, ele não desgrudou os olhos de mim enquanto se lambia inteiro sem entender a razão da minha ira.
Pois já imaginou, ó, nobre leitor, se esta humilde datilógrafa que vos fala fosse uma criança nos dias de hoje? Pelo meu prosaico acerto de contas com o pastor alemão, eu correria o risco de tomar um tiro na cabeça disparado por algum soldado sem o menor preparo emocional para carregar uma arma de fogo.
Segundo o coronel do 16º Batalhão da PM, Wanderley Medeiros, o que aconteceu na favela São Remo foi "imprudência total". Diz ele que a atitude do soldado José Álvaro Pereira da Silva "contraria todas as ordens da Polícia Militar" e que o PM jamais poderia ter entrado na favela "sem a presença de policiais graduados" ao seu lado.
O que isso significa? Que a PM monta operações de guerra para lidar com brincadeiras de criança?
Como é que a PM não sabia que o "Carnaval do Ovo" é uma tradição na favela São Remo? Será que não existe nenhuma forma de comunicação entre aquela comunidade e a força policial designada para protegê-la? Obviamente, a resposta é não. E, obviamente, uma polícia que intimida crianças e atira a esmo não está preparada para proteger.

barbara@uol.com.br


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