São Paulo, segunda, 23 de fevereiro de 1998

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COTIDIANO IMAGINÁRIO
A mensagem preservada

MOACYR SCLIAR

"Pelo menos 25% dos porta-preservativos enviados a São Paulo pelo Ministério da Saúde trazem um pedaço de papelão em lugar da camisinha."(Cotidiano, 17/2/98)

Eu não compro camisinha, gabava-se Otávio:
- Se a mulher quiser usar, que providencie.
Submissa, Elsa, a mais recente namorada, vinha aos encontros trazendo o preservativo. Um dia, mostrou-lhe um invólucro diferente:
- Estes aqui não custam nada. É o governo que distribui.
Abre logo, rosnou Otávio, já sem roupa e ardendo de desejo. Foi o que ela fez, e então -surpresa, desagradável surpresa- dentro havia um pedaço de papelão. Otávio ficou possesso:
- Você não serve para nada, mesmo. Nem uma camisinha decente é capaz de arranjar.
Vestiu-se e, com um palavrão, foi embora, batendo a porta do quarto do motel. Elsa ficou ali, chorando baixinho. Finalmente, enxugou os olhos e mirou o pedaço de papelão que ainda segurava. Deu-se conta de que havia algo escrito.
Era uma mensagem. Numa letra minúscula, porém muito bonita, e numa grafia impecável, alguém que se identificava apenas como Juca, dirigia-se a uma suposta "alma irmã". Tratava-se de um preso, um dos vários prisioneiros encarregados de embalar preservativos:
Sei que não deveria ter removido a camisinha - dizia Juca. Mas não vi outro meio para transmitir o meu apelo.
O apelo: ele estava para sair da prisão e queria encontrar uma moça decente e sensível para uma relação séria e duradoura. Descrevia-se como um homem de 30 anos, honesto e bem-educado, de aparência agradável, que já havia reparado o seu erro e agora estava pronto para começar nova vida.
Se você acha que posso corresponder à sua expectativa, espere-me na porta do presídio, no dia 23 de fevereiro às 15h. Venha de vestido vermelho e óculos escuros. E traga essa mensagem, claro.
No dia 23 de fevereiro, lá estava Elsa, na porta do presídio, de vestido vermelho e óculos escuros. Levava consigo a mensagem manuscrita. E, claro, vários preservativos.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.



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