São Paulo, quinta-feira, 23 de março de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

Raiz e raízes

Na última segunda-feira, foi inaugurado o Museu da Língua Portuguesa. Na terça, a imprensa deu destaque a um erro de acentuação presente num dos painéis do museu (grafou-se "raiz" com acento agudo no "i").
Vamos ao que conta (e que foi objeto das mensagens de muitos leitores): por que se acentua "raízes", mas não se acentua "raiz"? De início, é imperativo dizer que o fato de uma palavra ser ou não ser acentuada no singular não significa nada em relação ao plural. Há pares de todos os tipos ("açúcar/ açúcares", "raiz/ raízes", "hífen/ hifens", "bar/bares").
Também é preciso dizer que ninguém deve decorar a acentuação de palavra por palavra (esta tem, aquela não tem etc.) para saber acentuar de acordo com a norma vigente. Basta conhecer o mecanismo do sistema de acentuação de nossa língua. Como já foi dito mais de uma vez neste espaço, o mecanismo se apóia numa relação binária, de exclusão.
Vamos direto à tradução disso. No par "mulher/açúcar", por exemplo, temos uma oxítona ("mulher") e uma paroxítona ("açúcar"), ambas terminadas em "r". O que se faz? Coloca-se acento nas duas? Ou não se acentua nenhuma? Nem uma coisa nem outra. Coloca-se acento na palavra que pertence ao grupo minoritário -o das paroxítonas terminadas em "r", no caso.
Para que se perceba que de fato é esse o grupo minoritário, basta verificar que todos os infinitivos portugueses terminam em "r" e são oxítonos, ou seja, as oxítonas terminadas em "r" são muito mais numerosas do que as paroxítonas de mesma terminação.
Como diz a Barbara Gancia, aposto um picolé de limão como ninguém consegue dizer de bate-pronto mais de quinze ou vinte paroxítonas terminadas em "r" (não vale recorrer a programas de computador). Quer um empurrão? Vamos lá: açúcar, dólar, éter, cadáver, caráter, revólver, mártir, sóror, fêmur... E o estoque começa a escassear. Com um pouco de esforço, chega-se a "aljôfar", "âmbar", "nenúfar"... (que, por sinal, são usadíssimas no dia-a-dia...).
Moral da história: se amanhã de manhã surgir uma nova palavra na língua, se ela ganhar uso freqüente a ponto de ir parar nos livros, nos jornais etc. e se ela for paroxítona terminada em "r", será grafada com acento gráfico. Sabe por quê? Porque todas as (poucas) paroxítonas terminadas em "r" são acentuadas. E por que todas elas são acentuadas? Porque nenhuma das (muitas) oxítonas terminadas em "r" é acentuada.
E onde entra o caso de "raiz" e "raízes" nessa história? Entra no mesmo princípio (relação binária, de exclusão). Nessas duas palavras ocorre hiato ("seqüência de duas vogais que pertencem a sílabas diferentes", na definição do "Aurélio"). Quando a segunda vogal do hiato é "i" ou "u" (tônicos), coloca-se acento agudo, desde que esse "i" e esse "u" estejam sozinhos ou acompanhados de "s". É por isso que se põe acento em "raízes" ("ra-í-zes"), mas não se põe em "raiz" ("ra-iz" - o "i" é acompanhado de "z" na sílaba).
Mas por que se põe acento na segunda vogal desses casos de hiato? Onde está o outro lado da moeda? Está no ditongo (como o que há em "vai", por exemplo). Compare "pais" e "país", por exemplo. Já percebeu? Em "pais" ocorre ditongo; em "país", hiato. Como os hiatos são menos numerosos do que os ditongos... É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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