São Paulo, domingo, 23 de julho de 2000


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GILBERTO DIMENSTEIN

O problema de São Paulo não é corrupção, mas ingratidão

O Ministério Público de São Paulo denunciou, na semana passada, servidores municipais que exploravam defuntos.
A polícia coletou provas de que a quadrilha cobrava pedágios dos jardineiros credenciados para conservar os túmulos e exigia propina dos familiares para que os corpos não fossem exumados; as covas são temporárias e, passados três anos, a exumação deveria ser obrigatória.
Não consigo ver melhor síntese do caos público paulistano do que um esquema de roubalheira para faturar nos cemitérios - imaginava que, pelo menos ali, se pudesse descansar em paz.
Chegamos, literalmente, ao fundo da cova.
O fundo da cova é visível na pesquisa divulgada, também semana passada, do prestígio do prefeito Celso Pitta.
Em seu último ano de mandato, ele é reprovado por 78% dos entrevistados.
Num sinal de desespero, o ex-padrinho de Pitta, Paulo Maluf, lançou uma insólita campanha a favor da pena de morte, tema tão próximo da agenda municipal como as eleições presidenciais americanas ou a Aids na África.
No começo do mês, ele prometeu, ar compenetrado: em quatro anos de mandato, reduziria a tal ponto a criminalidade que São Paulo se igualaria a Nova York.
O delírio é constatável apenas por uma informação. Em Nova York, duas pessoas são assassinadas por semana; em São Paulo, 110. Mesmo que fosse governador, responsável pela Polícia Militar, a promessa já seria alucinada; imagine, então, sendo apenas prefeito.
Nem o extermínio seria capaz de reduzir a tal nível a criminalidade. Por sinal, a julgar pelas informações, o extermínio já existe: boa parte dos mortos em enfrentamento com a polícia foi baleada pelas costas.
Espantoso que, apesar de responsável pela vitória de Pitta e, agora, com promessas de campanhas descoladas de qualquer realidade, Paulo Maluf ainda seja um candidato fortíssimo, oscilando entre o segundo e o terceiro lugar.
O leitor habitual desta coluna sabe que sou otimista em relação a São Paulo - mais pela vitalidade e cosmopolitismo de seus habitantes, a criatividade empresarial, acadêmica e cultural do que pela ação do poder público.
Digo, e repito, que esse fervilhar, com tanta gente interessante fazendo tantas coisas interessantes, transforma São Paulo na cidade mais atraente do país.
Há um abismo entre a efervescência da sociedade e o poder público que, hoje, nem é poder, nem é público.
Os candidatos na disputa à prefeitura podem ser melhores ou piores; mais honestos ou menos honestos, com mais ou menos experiência, com melhores ou piores idéias, com planos menos ou mais viáveis.
Mas neste início de campanha já se pode afirmar: diante do tamanho do desafio de uma cidade no fundo da cova, os candidatos se igualam num ponto. Todos, sem exceção, são de segundo escalão, não demonstram estar à altura do monumental desafio. Um desafio que vai exigir do eleito uma articulação com a sociedade, atraindo seus principais atores para uma ação comunitária, integração com as várias esferas de poder (estadual e municipal) para reduzir a violência e a exclusão social, visão cosmopolita para reforçar a vocação de São Paulo como cidade internacional.
Coragem para brigar com a classe média e tirar os carros da rua e força para dobrar os esquemas corruptos da Câmara Municipal, mostrando aos especuladores imobiliários que não somos terra de ninguém.
Exige um estadista, para quem ser prefeito de São Paulo é a maior meta, não um trampolim para outro cargo público.
É um cargo para quem tenha soluções técnicas, mas, em especial, para quem seja apaixonado pela cidade.
Precisamos de alguém que tenha a criatividade urbana de um Jaime Lerner, disposição para briga de um Antônio Carlos Magalhães, firmeza de Mário Covas, sensibilidade social de Lula, garra de Ciro Gomes e equilíbrio de Fernando Henrique Cardoso.
Talvez digam que esse perfil seja alucinação, não existe na vida real, delírio semelhante ao das promessas de Paulo Maluf de igualar São Paulo a Nova York.
Talvez, provavelmente. Os candidatos em disputa oscilam entre o descrédito das elites pensantes, a falta de expressão política, a baixa experiência administrativa e a pouca vivência em assuntos municipais.
Até nos conformamos pela simples razão de que, comparado ao que temos, qualquer coisa parece melhor.
Justamente por isso, e só por isso, a Prefeitura de São Paulo é o cargo vago mais importante do Brasil.
Seja qual for o eleito, de direita ou de esquerda, sua primeira tarefa deveria ser formar um comitê de salvação municipal, com as personalidades mais expressivas da cidade, de empresários, intelectuais, artistas, urbanistas a líderes sindicais.
É um jeito de tirar o pé da cova.

PS- O problema moral básico de São Paulo não é corrupção, mas ingratidão. Incrível que, nesta terra de migrantes e imigrantes, tanta gente tenha prosperado, enriquecido, e não se sinta grata à cidade, virando-lhe as costas e transformando-a quase num dormitório.
Minha história é parecida à história de milhões de paulistanos. Como neto de imigrantes europeus e da África do Norte, fugidos da opressão, e filho de migrantes nordestinos, em busca de melhores possibilidades profissionais, inevitável me sentir grato ao Brasil e a São Paulo - fora desses espaços, provavelmente não teria as chances que tive.
Talvez não tivesse nenhuma chance.
E-mail - gdimen@uol.com.br


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