São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

WALTER CENEVIVA

Identificação não se confunde com anistia


A reapreciação dessas ações esbarra em duas ordens de obstáculos: o da lei e o das questões políticas envolvidas

TEM-SE FALADO NA anistia dos que se envolveram em delitos ou atos violadores de direitos, inclusive pela tortura, durante o período da ditadura militar. Há pólos opostos na discussão: o dos que defendem o processo contra servidores públicos envolvidos naquele período e daqueles para os quais a retomada de tais processos se inviabilizou com regras de Constituição e do artigo 8º do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).
Antes de discutir o artigo 8º, cabe anotar que anistiar corresponde a ato de governo, previsto em mais de um artigo da Constituição. A prática da anistia é confiada restritamente à União (artigo 21, inciso XVII), em norma confirmada pelo inciso VIII do artigo 48. Dois comportamentos decorrem dessas regras. São integrados complementarmente para o mesmo fim: concessão da anistia pelo Congresso Nacional, submetida à sanção do presidente da República.
Tomando o artigo 8º do ADCT como base, deve-se consultar a lei nº 10.559/02 para verificar que o constituinte estabeleceu a concessão de anistia em várias alternativas, em extenso limite temporal, encerrado em 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição).
A anistia se aplica a ações em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, entre alternativas que também existiram ao tempo. Atos institucionais e complementares foram editados pelos detentores do poder a partir de março de 1964, originando em grande parte procedimentos sigilosos, ocultados da comunidade.
A anistia prevista do artigo 8º também se aplicou, em resumo, aos servidores públicos civis e aos empregados de governos punidos, demitidos ou que tiveram atividades profissionais interrompidas no mesmo período. São situações administrativas mais fáceis de resolver. Há no problema, como se vê, situações diversas, mas conceder anistia é um ato do poder, com olhos para o passado, pois reavalia atos praticados dentro ou fora da lei. A reapreciação dessas ações esbarra em duas ordens de obstáculos: o da lei, que a excluiu da possibilidade jurídica, e o das questões políticas envolvidas, com ações e delitos cujo pleno conhecimento foi negado ao povo.
No caso brasileiro, a anistia foi concedida mesmo para atos contrários aos direitos humanos, relacionados com a subsistência da vida e da dignidade dos seres humanos vivos e mortos. De tudo decorre a conclusão fundada apenas no jurídico: admite-se em face da lei que os comportamentos do passado ditatorial estão com a sua punição afastada. Ocorre, porém, que a situação retratada não se confunde com o próprio conhecimento dos atos ilegais, com a identificação plena, de todos e cada um dos que os praticaram, torturando, matando e violando. A identificação não se confunde, ainda, com o perdão, traço marcante da anistia, cuja concessão é estranha à prova dos fatos. A distinção é válida para os sobreviventes e para os parentes dos atingidos pela violência do Estado. Têm o direito de saber a quem se deveu a ofensa que os vitimou. Trata-se de direito autônomo para os que quiserem exercê-lo, tendo sido prejudicados, direta ou indiretamente. Direito de conhecer de onde lhes veio o mal, com a plena disponibilização de todos os dados.


Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Livros Jurídicos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.