São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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GILBERTO DIMENSTEIN

Já vencemos

Em 2002, uma pessoa era levada, em média, todos os dias para um cativeiro em São Paulo; a maioria dos casos ocorria na capital. No primeiro semestre deste ano, segundo dados oficiais que obtive na sexta-feira, a média baixou para um caso por semana, uma queda de 70%.
Mesmo com a expressiva queda, ainda se está longe dos níveis de 1998 e 1999, quando se registrava um seqüestro por mês -o que, aliás, já era ruim. Esses dados não permitem a ninguém sentir-se tranqüilo: cresceu o número dos chamados seqüestros relâmpagos, sem cativeiro, mas fazendo as vítimas reféns por algumas horas.
O fato, entretanto, é que, desde 2002, a incidência de seqüestros com cativeiro têm caído ano após ano. Essa notícia -boa, mas muito distante do suficiente- mostra que, independentemente do resultado, seja "sim" ou "não", o país sai ganhando com o referendo.
Afinal, qual é a relação entre o referendo e a queda do número de seqüestros? É a mesma explicação para uma espécie de ""milagre" paulistano: em oito meses, ocorreu um único homicídio no Jardim Ângela, distrito apontado em 2000 como a região mais violenta do mundo.
 
O que de fato importa vai muito além do "sim" e do "não". Relevante é a mobilização provocada pelo referendo -esse movimento, inédito no Brasil, mudou o patamar do debate sobre as causas da violência e como enfrentá-la.
Na mobilização que vem da inconformidade é onde as viradas têm alguma chance de nascer. Isso significa que o tema da violência irá atordoar cada vez mais os governantes e forçá-los a apresentar planos com um mínimo de consistência para promover a segurança nas ruas.
Voltemos ao exemplo dos seqüestros, que perderam força porque a gritaria foi generalizada, forte, exigindo ações concretas da polícia. Note-se que berrou mais alto justamente quem podia berrar mais alto -a elite. A polícia se preparou melhor para enfrentar os seqüestradores e, ao mesmo tempo, criaram-se projetos bancados pela sociedade e apoiados pelos meios de comunicação.
Um desses projetos é uma linha direta telefônica, lançada pelo Instituto São Paulo contra a Violência, para denunciar seqüestros; os meios de comunicação ajudaram a popularizar esse número. Um grupo recebe as denúncias, que são enviadas para a polícia e, depois, acompanha o processo. Além disso, repetiram-se insistentemente dicas para a população sobre como identificar cativeiros.
Traduzindo em números: desde 2002 até o semestre passado, 828 seqüestradores foram presos. Repetindo o óbvio dos óbvios: o que inibe o candidato a criminoso é a desconfiança de que vai ser punido.
 
A mais importante experiência de segurança pública brasileira está na região metropolitana de São Paulo, onde, em quatro anos, a taxa de homicídios caiu 40%.
Parte dessa evolução se deve à mobilização comunitária que, entre outras coisas, acionou, desde o final da década de 90 -mais precisamente em 1997- uma campanha pelo desarmamento. A campanha foi iniciada por estudantes de direito da Universidade de São Paulo e, daí, ganhou forma o "Sou da Paz". A polícia se sentiu ainda mais pressionada a coletar armas.
Se olharmos friamente, não dá para dizer até que ponto a retirada de armas de circulação implicou a redução da violência. Mas dá para dizer tranqüilamente que a mobilização gerou um clima mais favorável de combate à barbárie.
Quando se analisam comunidades que enfrentaram e enfrentam a violência - Nova York, Cali, Boston, Medelin, Diadema Heliópolis ou Jardim Ângela- vê-se que o primeiro passo foi a indignação coletiva; da indignação partiu-se para a mobilização; e, daí, para a aplicação de políticas públicas, combinando prevenção e repressão.
 
Se considerássemos esse referendo apenas pelos argumentos dos partidários do "sim" e do "não", ficaríamos frustrados. Seduzidos pela simplificação eleitoral, os dois lados se baseiam em premissas frágeis. Proibir armas é apenas um detalhe de um programa para reduzir a violência. Garantir a comercialização não significa que o cidadão esteja mais protegido; está, inclusive, mais ameaçado de levar um tiro de um marginal, de perder a cabeça e matar alguém ou de deixar o revólver cair nas mãos do filho.
 
A questão óbvia é que, nessa disputa, ambos os lados buscam exatamente a mesmo objetivo: fazer com que a sociedade seja mais segura. O referendo é uma marca história de mobilização para que esse objetivo suba ao topo da agenda nacional.
Por isso, todos vencemos.
 
P.S. - Entre essas duas ilusões, voto pelo "sim" por uma questão quase de redução de dano: a proibição pode, quem sabe, ajudar um pouco, por menos que seja, além de enviar um sinal mais claro de inconformidade contra a barbárie.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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