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FIM DE JOGO
O palmeirense Diogo Lima Borges gostava de usar a frase para demonstrar sua dedicação à torcida organizada
"Ainda vou morrer famoso", dizia jovem
PAULO SAMPAIO
DA REVISTA DA FOLHA
"Eu ainda vou morrer pela
Mancha e ficar famoso", costumava dizer Diogo Lima Borges. E
assim foi. A bravata simplória,
que o palmeirense gostava de usar
para demonstrar sua dedicação à
torcida organizada, virou profecia
no domingo passado, quando
uma bala disparada a esmo, em
uma estação de metrô, atravessou
seu abdome e saiu do outro lado,
dilacerando vísceras e intestino.
Torcedor número 6.376 da
Mancha Verde, pobre e subempregado, Diogo parecia saber que
só uma morte besta assim para tirar do anonimato garotos comuns feito ele.
Na última, por exemplo, ele se
levantou às 5h de segunda-feira
para fazer um bico como servente
em Bragança Paulista (83 km ao
norte de São Paulo), onde havia
passado a morar há quatro meses.
Paulistano nascido em Vila Marieta (zona leste), Diogo acompanhou a mãe, Clarice, 45, que deixava São Paulo para morar com o
pedreiro Valdir Miguel, 36. O casal se conheceu há cerca de um
ano. Até então, mãe e filhos moravam no bairro onde nasceram.
Aquela foi a última vez que Damarys viu o irmão. "Arrumei minha mala porque ia para São Paulo e, dois dias depois, para Curitiba passar o feriado (12 de outubro) e o resto da semana.
A terça-feira de "Muñoz" -como Diogo era chamado pelos integrantes da torcida, por causa da
semelhança com o atacante colombiano que faz parte do time-
seguiu o mesmo ritmo da segunda. Ele acordou cedo, colocou o
CD do cantor Belo, seu preferido,
enquanto se arrumava para ir trabalhar em uma obra na redondeza. Vaidoso, não saía sem o boné,
para esconder a calvície precoce.
O emprego de servente quem
arrumou foi Valdir, o padrasto.
Os pais de Diogo foram casados
durante 17 anos. O casamento,
encerrado em 1997, começou a
desmoronar na época em que
Marcos, então jornaleiro, foi roubado duas vezes: primeiro levaram as revistas e os jornais que
vendia; no dia seguinte, a banca
propriamente dita. Oito anos
mais velho que a irmã, Diogo pegou, por assim dizer, a época das
vacas gordas da família: chegou a
estudar em escola particular e
passeava no carro que o pai podia,
então, ter (um Corcel II).
Quarta-feira, dia 12, foi feriado.
Diogo folgou na obra e ajudou a
mãe a vender roupas de hip hop
em uma feira de Bragança.
Definida por todos como mais
rígida que o pai na educação dos
filhos, Clarice não sai do lado do
caixão, mas quase não chora, a expressão entre muda e anestesiada.
Quando soube pela TV, no Paraná, que dois rapazes tinham sido atingidos por tiros em um conflito de torcidas, Clarice mais uma
vez temeu pelo filho. Agora, seus
agouros tinham fundamento.
"E o Diogo, pai?", perguntou
Damarys ao telefone.
"O Diogo tomou um tiro, filha",
respondeu Marcos.
"Foi grave?"
"Parece que não. Informaram
que ele entrou andando no hospital, só com um pouco de sede",
respondeu o pai, que no tumulto
se separou do filho. A notícia da
morte foi depois confirmada por
uma prima de Diogo, que ligou de
São Paulo para contar.
No dia do enterro, desatinada
antes de se despedir do filho pela
última vez, Clarice deixou-se amparar à frente do caixão carregado
por integrantes da torcida. "Sempre disse a ele:
Na quinta-feira, Diogo amanheceu sozinho em Bragança: a mãe,
a irmã e o padrasto já estavam no
Paraná. Clarice fala de Diogo como se estivesse falando sozinha.
"Quando ele ganhou esse canário, eu perguntei: "Esse passarinho
canta?". Ele respondeu: "Se não
canta, vai aprender". Eu respondi
que o passarinho era um fiasco,
ele riu e esse passou a ser o apelido
do canário", lembra ela.
No sábado, Diogo trabalhou na
obra pela manhã e, à tarde, foi
com amigos ao sítio de um conhecido. No fim do dia, teve pagode
no Porkarias, outro bar de Bragança. Diogo dormiu tarde e
acordou tarde no domingo. Tomou o ônibus correndo para encontrar o pai, no extremo da zona
leste. "Eu o encontrei por volta
das 11h50 no terminal rodoviário
AE Carvalho, de onde se sai para
os jogos do Palmeiras", lembra
Marcos. Sem ver o filho havia dois
meses, ele diz que não pretendia ir
ao jogo. Mas foi. "Alguma coisa
no meu coração me empurrou,
como se dissesse: "Vai, vai"."
O pior aconteceria vários pontos de ônibus e estações de metrô
depois. Nas palavras de Marcos,
tudo se passou muito rápido.
Morrer pela torcida e, vá lá, ficar
famoso, não exigiu de Diogo nenhum esforço. Palmeirenses de
quatro costados -o avô foi jogador do Palestra Itália e legou a paixão a Marcos, que, por sua vez, fez
de Diogo um palmeirense "mesmo antes de nascer"-, pai e filho
conheciam bem a violência das
torcidas organizadas e tomaram
precauções: pegaram um ônibus
escoltado pela polícia e, de metrô,
evitaram a estação Brás, uma integração muito movimentada. Nenhum dos dois usava camiseta do
time. Não foi suficiente.
No Tatuapé, a estação foi invadida pelos torcedores adversários,
corintianos. O confronto, previamente anunciado pela internet,
incluiu rojões e tiros -um dos
quais atingiu Diogo, a essa altura
da confusão já separado do pai.
A fama póstuma realmente chegou, como ele havia previsto, mas
até seu único momento de glória
Diogo teve que dividir com outros
dois rapazes, tão comuns como
ele: no mesmo dia, o corintiano
Wellington Moraes, 25, integrante da "milícia" inimiga, levou um
tiro na cabeça, disparado por palmeirenses. Na segunda-feira, foi a
vez de Anderson Ferreira Tomás,
26, torcedor da Ponte Preta de
Campinas, morto por torcedores
do São Paulo. Qualquer um deles
poderia substituir Diogo nesta reportagem: seria só outro personagem para o mesmo roteiro.
Mortos a tiro, Diogo e Wellington talvez colaborem involuntariamente na campanha pela proibição da venda de armas de fogo,
que será decidida no referendo de
hoje. Quem defende o sim pode
até dizer que, se não fosse o acesso
fácil a revólveres, eles poderiam
estar vivos. Pena que Anderson,
morto a pancadas por uma gangue de 15, estrague a aparente lógica da argumentação.
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