São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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FIM DE JOGO

O palmeirense Diogo Lima Borges gostava de usar a frase para demonstrar sua dedicação à torcida organizada

"Ainda vou morrer famoso", dizia jovem

PAULO SAMPAIO
DA REVISTA DA FOLHA

"Eu ainda vou morrer pela Mancha e ficar famoso", costumava dizer Diogo Lima Borges. E assim foi. A bravata simplória, que o palmeirense gostava de usar para demonstrar sua dedicação à torcida organizada, virou profecia no domingo passado, quando uma bala disparada a esmo, em uma estação de metrô, atravessou seu abdome e saiu do outro lado, dilacerando vísceras e intestino.
Torcedor número 6.376 da Mancha Verde, pobre e subempregado, Diogo parecia saber que só uma morte besta assim para tirar do anonimato garotos comuns feito ele.
Na última, por exemplo, ele se levantou às 5h de segunda-feira para fazer um bico como servente em Bragança Paulista (83 km ao norte de São Paulo), onde havia passado a morar há quatro meses. Paulistano nascido em Vila Marieta (zona leste), Diogo acompanhou a mãe, Clarice, 45, que deixava São Paulo para morar com o pedreiro Valdir Miguel, 36. O casal se conheceu há cerca de um ano. Até então, mãe e filhos moravam no bairro onde nasceram.
Aquela foi a última vez que Damarys viu o irmão. "Arrumei minha mala porque ia para São Paulo e, dois dias depois, para Curitiba passar o feriado (12 de outubro) e o resto da semana.
A terça-feira de "Muñoz" -como Diogo era chamado pelos integrantes da torcida, por causa da semelhança com o atacante colombiano que faz parte do time- seguiu o mesmo ritmo da segunda. Ele acordou cedo, colocou o CD do cantor Belo, seu preferido, enquanto se arrumava para ir trabalhar em uma obra na redondeza. Vaidoso, não saía sem o boné, para esconder a calvície precoce.
O emprego de servente quem arrumou foi Valdir, o padrasto. Os pais de Diogo foram casados durante 17 anos. O casamento, encerrado em 1997, começou a desmoronar na época em que Marcos, então jornaleiro, foi roubado duas vezes: primeiro levaram as revistas e os jornais que vendia; no dia seguinte, a banca propriamente dita. Oito anos mais velho que a irmã, Diogo pegou, por assim dizer, a época das vacas gordas da família: chegou a estudar em escola particular e passeava no carro que o pai podia, então, ter (um Corcel II).
Quarta-feira, dia 12, foi feriado. Diogo folgou na obra e ajudou a mãe a vender roupas de hip hop em uma feira de Bragança.
Definida por todos como mais rígida que o pai na educação dos filhos, Clarice não sai do lado do caixão, mas quase não chora, a expressão entre muda e anestesiada.
Quando soube pela TV, no Paraná, que dois rapazes tinham sido atingidos por tiros em um conflito de torcidas, Clarice mais uma vez temeu pelo filho. Agora, seus agouros tinham fundamento.
"E o Diogo, pai?", perguntou Damarys ao telefone.
"O Diogo tomou um tiro, filha", respondeu Marcos.
"Foi grave?"
"Parece que não. Informaram que ele entrou andando no hospital, só com um pouco de sede", respondeu o pai, que no tumulto se separou do filho. A notícia da morte foi depois confirmada por uma prima de Diogo, que ligou de São Paulo para contar.
No dia do enterro, desatinada antes de se despedir do filho pela última vez, Clarice deixou-se amparar à frente do caixão carregado por integrantes da torcida. "Sempre disse a ele:
Na quinta-feira, Diogo amanheceu sozinho em Bragança: a mãe, a irmã e o padrasto já estavam no Paraná. Clarice fala de Diogo como se estivesse falando sozinha.
"Quando ele ganhou esse canário, eu perguntei: "Esse passarinho canta?". Ele respondeu: "Se não canta, vai aprender". Eu respondi que o passarinho era um fiasco, ele riu e esse passou a ser o apelido do canário", lembra ela.
No sábado, Diogo trabalhou na obra pela manhã e, à tarde, foi com amigos ao sítio de um conhecido. No fim do dia, teve pagode no Porkarias, outro bar de Bragança. Diogo dormiu tarde e acordou tarde no domingo. Tomou o ônibus correndo para encontrar o pai, no extremo da zona leste. "Eu o encontrei por volta das 11h50 no terminal rodoviário AE Carvalho, de onde se sai para os jogos do Palmeiras", lembra Marcos. Sem ver o filho havia dois meses, ele diz que não pretendia ir ao jogo. Mas foi. "Alguma coisa no meu coração me empurrou, como se dissesse: "Vai, vai"."
O pior aconteceria vários pontos de ônibus e estações de metrô depois. Nas palavras de Marcos, tudo se passou muito rápido. Morrer pela torcida e, vá lá, ficar famoso, não exigiu de Diogo nenhum esforço. Palmeirenses de quatro costados -o avô foi jogador do Palestra Itália e legou a paixão a Marcos, que, por sua vez, fez de Diogo um palmeirense "mesmo antes de nascer"-, pai e filho conheciam bem a violência das torcidas organizadas e tomaram precauções: pegaram um ônibus escoltado pela polícia e, de metrô, evitaram a estação Brás, uma integração muito movimentada. Nenhum dos dois usava camiseta do time. Não foi suficiente.
No Tatuapé, a estação foi invadida pelos torcedores adversários, corintianos. O confronto, previamente anunciado pela internet, incluiu rojões e tiros -um dos quais atingiu Diogo, a essa altura da confusão já separado do pai.
A fama póstuma realmente chegou, como ele havia previsto, mas até seu único momento de glória Diogo teve que dividir com outros dois rapazes, tão comuns como ele: no mesmo dia, o corintiano Wellington Moraes, 25, integrante da "milícia" inimiga, levou um tiro na cabeça, disparado por palmeirenses. Na segunda-feira, foi a vez de Anderson Ferreira Tomás, 26, torcedor da Ponte Preta de Campinas, morto por torcedores do São Paulo. Qualquer um deles poderia substituir Diogo nesta reportagem: seria só outro personagem para o mesmo roteiro.
Mortos a tiro, Diogo e Wellington talvez colaborem involuntariamente na campanha pela proibição da venda de armas de fogo, que será decidida no referendo de hoje. Quem defende o sim pode até dizer que, se não fosse o acesso fácil a revólveres, eles poderiam estar vivos. Pena que Anderson, morto a pancadas por uma gangue de 15, estrague a aparente lógica da argumentação.


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