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MOACYR SCLIAR
As agruras do sexo
1. O sorriso de deboche
Alguém se aproxima de Andy e sorri.
A contrapartida é um sorriso, naturalmente. Outra pessoa passa, carrancuda, e Andy subitamente muda
de expressão. Todos se espantam
com sua habilidade de reagir aos humores humanos. Porque Andy é um
robô, a versão atualizada de um projeto conduzido na Universidade do
Texas. Folha Ciência, 18.fev.2003
Solteirão, esquisito, ele tinha, contudo, vida sexual,
ainda que um tanto estranha.
Sua namorada era Sylvie, uma
boneca inflável que comprara nos
Estados Unidos, onde tinha negócios. Feita de plástico imitando
pele acetinada, dotada de braços
e pernas móveis e uma vagina vibratória, a boneca representava o
estado da arte em matéria de sexo
artificial e seu desempenho era
perfeito. Uma coisa, contudo, incomodava seu dono: o rosto. Muito bonito, mas parado, sem nenhuma expressão. Ele queria que
a boneca risse com ele, que se
transfigurasse durante o orgasmo, como ele.
Foi então que ouviu falar do robô da Universidade do Texas. Ficou entusiasmado: aquilo, sem
dúvida, resolveria o seu problema. Viajou até lá e conseguiu fazer contato com um técnico que
havia trabalhado no projeto. Por
um bom dinheiro, o homem fabricou uma boneca em tudo idêntica a Sylvie, mas com um rosto
dotado de expressão. Sorria em
resposta ao sorriso do dono, fazia
cara de paixão quando o dono estava apaixonado.
Durante meses viveram uma
verdadeira lua-de-mel. Mas então um dia ele voltou para casa
muito aborrecido. Tivera um
enorme prejuízo nos negócios, um
prejuízo que o ameaçava inclusive de falência. Foi o que contou à
boneca, imaginando que se mostraria igualmente desgostosa.
Mas não: sorria, ela. Sorriso alvar, fixo. Aparentemente tinha
ocorrido algum problema com o
dispositivo eletrônico das expressões, mas ele não quis saber de
nada: furioso, atirou-se à boneca
aos socos e pontapés e acabou por
destruí-la.
Sobrou só a cabeça. Que continua sorrindo e, pelo jeito, o fará
para sempre. O amor um dia termina. O deboche é eterno.
2. Segredos de alcova
Casal alemão está exigindo indenização de uma companhia de turismo
em Cuba, porque uma camareira interrompeu sua relação sexual. Ela
entrou no quarto duas vezes, apesar
do aviso de "Não incomodar". Mundo Online, 20.fev.2003
A administração do hotel pediu desculpas pelo inconveniente, a companhia de turismo também, mas o casal não
quis saber e foi adiante com a demanda judicial. Como explicou o
homem ao advogado, não se tratava apenas de uma relação sexual, uma a mais na vida de um
casal. Era uma coisa simbólica,
transcendente, um verdadeiro recomeço para os dois.
Vinham brigando há meses. A
situação se tornara insuportável e
ele começou a pensar em separação. Ela, mais conciliadora, resolveu fazer um último esforço. Ponderou que todos os casais passam
por isso, por uma fase de conflitos.
Além disso, as circunstâncias não
ajudavam. Estavam ambos com
problemas no emprego. Havia a
ameaça de guerra contra o Iraque. E, finalmente, tinham de suportar os rigores do inverno europeu, as baixas temperaturas, o
céu permanentemente carregado.
Quem sabe mudavam de ambiente? Quem sabe passavam uns
dias no Caribe? Ali, sob um céu
azul e numa paisagem paradisíaca, poderiam ter a segunda chance que ambos almejavam.
Foram, e mal chegaram, convenceram-se de que tinham feito
a coisa certa: se há lugar para o
amor, é o trópico. De imediato, e
arrebatados pela paixão, foram
para o quarto do hotel. E então
aconteceu aquilo, a camareira
entrando duas vezes e interrompendo-os.
O homem está frustrado e furioso. Gastamos o que não podíamos
gastar, protesta, e quando estava
quase dando certo, uma incompetente põe tudo a perder. Ela
tem a mesma reclamação e uma
outra, que não diz ao advogado e
nunca dirá a ninguém: não lhe
passou desapercebido o olhar que
o marido lançou à camareira,
uma bela moça, quando esta entrou. Era um olhar de cobiça, um
olhar que dizia: "Gostaria que você estivesse aqui".
Isso ela não perdoará. E cobrará
dele pelo resto da vida. Mesmo
que ele não saiba do que está sendo cobrado.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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