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São Paulo, segunda-feira, 24 de fevereiro de 2003

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MOACYR SCLIAR

As agruras do sexo

1. O sorriso de deboche
 Alguém se aproxima de Andy e sorri. A contrapartida é um sorriso, naturalmente. Outra pessoa passa, carrancuda, e Andy subitamente muda de expressão. Todos se espantam com sua habilidade de reagir aos humores humanos. Porque Andy é um robô, a versão atualizada de um projeto conduzido na Universidade do Texas. Folha Ciência, 18.fev.2003

Solteirão, esquisito, ele tinha, contudo, vida sexual, ainda que um tanto estranha. Sua namorada era Sylvie, uma boneca inflável que comprara nos Estados Unidos, onde tinha negócios. Feita de plástico imitando pele acetinada, dotada de braços e pernas móveis e uma vagina vibratória, a boneca representava o estado da arte em matéria de sexo artificial e seu desempenho era perfeito. Uma coisa, contudo, incomodava seu dono: o rosto. Muito bonito, mas parado, sem nenhuma expressão. Ele queria que a boneca risse com ele, que se transfigurasse durante o orgasmo, como ele.
Foi então que ouviu falar do robô da Universidade do Texas. Ficou entusiasmado: aquilo, sem dúvida, resolveria o seu problema. Viajou até lá e conseguiu fazer contato com um técnico que havia trabalhado no projeto. Por um bom dinheiro, o homem fabricou uma boneca em tudo idêntica a Sylvie, mas com um rosto dotado de expressão. Sorria em resposta ao sorriso do dono, fazia cara de paixão quando o dono estava apaixonado.
Durante meses viveram uma verdadeira lua-de-mel. Mas então um dia ele voltou para casa muito aborrecido. Tivera um enorme prejuízo nos negócios, um prejuízo que o ameaçava inclusive de falência. Foi o que contou à boneca, imaginando que se mostraria igualmente desgostosa. Mas não: sorria, ela. Sorriso alvar, fixo. Aparentemente tinha ocorrido algum problema com o dispositivo eletrônico das expressões, mas ele não quis saber de nada: furioso, atirou-se à boneca aos socos e pontapés e acabou por destruí-la.
Sobrou só a cabeça. Que continua sorrindo e, pelo jeito, o fará para sempre. O amor um dia termina. O deboche é eterno.

2. Segredos de alcova
 Casal alemão está exigindo indenização de uma companhia de turismo em Cuba, porque uma camareira interrompeu sua relação sexual. Ela entrou no quarto duas vezes, apesar do aviso de "Não incomodar". Mundo Online, 20.fev.2003

A administração do hotel pediu desculpas pelo inconveniente, a companhia de turismo também, mas o casal não quis saber e foi adiante com a demanda judicial. Como explicou o homem ao advogado, não se tratava apenas de uma relação sexual, uma a mais na vida de um casal. Era uma coisa simbólica, transcendente, um verdadeiro recomeço para os dois.
Vinham brigando há meses. A situação se tornara insuportável e ele começou a pensar em separação. Ela, mais conciliadora, resolveu fazer um último esforço. Ponderou que todos os casais passam por isso, por uma fase de conflitos. Além disso, as circunstâncias não ajudavam. Estavam ambos com problemas no emprego. Havia a ameaça de guerra contra o Iraque. E, finalmente, tinham de suportar os rigores do inverno europeu, as baixas temperaturas, o céu permanentemente carregado. Quem sabe mudavam de ambiente? Quem sabe passavam uns dias no Caribe? Ali, sob um céu azul e numa paisagem paradisíaca, poderiam ter a segunda chance que ambos almejavam.
Foram, e mal chegaram, convenceram-se de que tinham feito a coisa certa: se há lugar para o amor, é o trópico. De imediato, e arrebatados pela paixão, foram para o quarto do hotel. E então aconteceu aquilo, a camareira entrando duas vezes e interrompendo-os.
O homem está frustrado e furioso. Gastamos o que não podíamos gastar, protesta, e quando estava quase dando certo, uma incompetente põe tudo a perder. Ela tem a mesma reclamação e uma outra, que não diz ao advogado e nunca dirá a ninguém: não lhe passou desapercebido o olhar que o marido lançou à camareira, uma bela moça, quando esta entrou. Era um olhar de cobiça, um olhar que dizia: "Gostaria que você estivesse aqui".
Isso ela não perdoará. E cobrará dele pelo resto da vida. Mesmo que ele não saiba do que está sendo cobrado.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.

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