São Paulo, terça, 24 de fevereiro de 1998

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Sapopemba, periferia, Racionais Mc's e eu

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas


Prefácio: aos Esaús que se ofenderam e viram anti-semitismo -em que eles não vêem?- na minha coluna sobre o filme "Amistad" (17/02), sugiro que me processem por racismo. Que encontrem no meu texto provas das acusações infundadas. Hipócritas.
Anti-semitismo? Minoria autoritária. Racistas são eles, intolerantes são eles. Merecem ser relegados ao monólogo estéril que criaram para si próprios, e no qual ninguém entra. Que falem sozinhos.
Eu é que devia processar todos por calúnia, difamação e hipocrisia. Sim, porque nem negra eu sou. Pena que não sou negra (muito menos branca) para justificar as teorias pseudofreudianas, as pseudo-ideologias e filosofias que se apressaram a aplicar a mim.
Hipócritas. Um exército de paranóicos tiranos, onipotentes. A mim não me classificam! A mim não me enquadram. A mim? A mim não me domesticam! Esses colunistas enfadonhos, doutores do nada, psicólogos de ninguém, filósofos da inutilidade. É preciso mostrar a eles com quantas vidas reais se constrói uma "integridade".
Hipócritas. São os acadêmicos oportunistas, os carreiristas do para-lugar-nenhum-contanto-que-eu-apareça-na-imprensa, os puxa-sacos de sempre, que ganharam um dia de fama à minha custa -já que ninguém lê os alfarrábios inúteis que eles escrevem para seus pares.
Quanto a mim, sempre me surpreende como é lida essa minha colunazinha de quinta categoria, no espaço amesquinhado desse caderno sem qualquer nobreza, num dia inexpressivo da semana.
Vai ver, é porque eu falo do lugar privilegiado da utopia brasileira realizada: o lugar do mulato, do samba da crioula doida, do brasileiro brasileiríssimo sem religião (ou com todas), sem raça (ou com várias), que eles não são, nunca foram, nunca serão. Eu é que sou. Eu e eu e eu. Que eles custam a engolir, a não ser em dias de exceção, de futebol e Carnaval.
Academia hipócrita. Imprensa hipócrita. Classezinha brasileira podre de cínica.
Sapopemba. Vida real. Outro dia me perdi em Sapopemba, bem no meio, bem no colo, bem na boca do monstro, do polvo sempre à espreita, que abraça com seus multimembros a cidade de São Paulo: a perigosa periferia, a fantasmagórica, a ogra periferia.
Um dia, quem sabe, o polvo se irrita, se rebela, ruge e esmaga com seu abraço a cidade que ele cerca poderoso. Pensei nisso perdida em Sapopemba, pensei na gosma que escorreria, no sangue desse abraço revoltoso, uma máquina de moer carnes e mais carnes.
Sapopemba o bairro, Sapopemba a avenida com seus 11.667 mil números -Sapopemba é uma serpente urbana, uma cobra sucuri esperando longa e longamente para dar o bote na cidade de muitos centros, de muitos sabores, na cidade que ela vai abocanhar um dia, enrolar-se todinha nela, triturar-lhe osso por osso até o último farelo.
Como desperdicei espaço, esta coluna sobre a periferia-polvo continua na próxima. Alah Salamaleikum!


E-mailmfelinto@uol.com.br



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