São Paulo, terça-feira, 24 de abril de 2001

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MARILENE FELINTO

Violadores do Senado são como estupradores

Eles agem na tocaia, são os mais covardes entre os covardes -voto secreto é uma covardia tipicamente masculina-, praticam o constrangimento da vítima sem nenhuma vergonha, com violência ou por meio de ameaça grave. Eles entram em qualquer sistema (ou em qualquer buraco) e saem como se nada tivesse acontecido, entram e saem sem permissão, forçando o rompimento, o coito, porque só lhes interessa a infração, precisam possuir e dominar tudo, de regras a himens, de leis a vaginas, de sigilos a ânus. Só isso lhes dá prazer e poder.
São esses os homens, os piores homens: à violação do painel de votação do Senado, tendo no centro da fraude uma mulher hierarquicamente submissa a dois homens, aplica-se a analogia de um estupro. É simples assim. O depoimento da ex-diretora do Prodasen Regina Borges ao Conselho de Ética do Senado foi o discurso senão de uma vítima (ela participou da fraude sem que ninguém lhe tenha botado "uma faca no pescoço", como afirmou), de uma mulher constrangida pelo poder de dois homens -segundo ela, os senadores Antonio Carlos Magalhães (PFL) e José Roberto Arruda (PSDB). E também segundo o próprio Arruda confessou ontem.
Sabatinada por uma maioria de homens no Conselho de Ética, Regina Borges parecia uma mulher estuprada sendo ouvida numa delegacia cheia de homens: a desconfiança geral de que ela "tivesse gostado daquilo" estampava-se na cara de seus interrogadores. Saiu-se bem, reconheceu sua participação no crime, deixou claro que a "faca" estava ali representada por outra coisa.
A faca é a falta de respeito, a ausência de ética, a ganância desmedida pelo poder, a mentira -o senador José Roberto Arruda, antes mesmo do depoimento de Regina, foi ao plenário tentar se defender. Terminou dizendo que "matou a pau" a acusação -com arrogância típica do papel hegemônico do macho-, achando que tinha convencido a opinião pública de que é inocente. No dia seguinte, foi obrigado a renunciar ao cargo de líder do governo no Senado e ontem não achou outra saída senão confessar.
A faca é o pau. Todo homem tem um quê de estuprador, ainda que seja simbolicamente, na esfera da fantasia sexual. A capacidade de entrar e sair como se nada tivesse acontecido é exclusividade masculina, característica anatômica reforçada pelo papel social que se atribui ao homem: o de dominador, aquele para quem a maioria das mulheres não é concebida como individualidades distintas, privadas, mas como uma coisa só, uma única possibilidade: a de invasão e dominação. Assim também ele encararia os sistemas, as regras.
Daí estar associado ao homem o sexo desvinculado da relação afetiva -o entrar e sair como se nada tivesse acontecido. Diz-se que isso se deve à dificuldade que ele tem de lidar com emoções como perda, ciúme, inveja, que implicam sofrimento. Uma balela cultural para justificar a dominação masculina, a organização social da patriarquia e suas instituições, a natureza competitiva e exploradora do capitalismo.
Violadores são como estupradores, com a diferença de que os últimos, principalmente quando são gente comum e pobre, sem direito a dignidade ou defesa, são caçados e assassinados nas cadeias pelos outros presos ou viram suas bichas. Quanto aos primeiros, nada garante (nem mesmo a confissão) a cassação de seus mandatos por abuso, por vergonha nacional. É mais provável que continuem a violar a sociedade sem que nada lhes aconteça.

E-mail: mfelinto@uol.com.br


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