São Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 2006

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SAÚDE

Droga para câncer da mama é usada em reprodução assistida apesar de aviso do fabricante sobre risco de má-formação fetal

Médicos ignoram alerta contra remédio

CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL

Especialistas brasileiros em reprodução assistida estão ignorando um alerta emitido pelo fabricante e prescrevendo um medicamento destinado ao tratamento do câncer da mama para estimular a ovulação de mulheres com dificuldade de engravidar.
Além do aviso do laboratório condenando o uso da droga para fins reprodutivos, o remédio também não tem autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para esse fim.
Em dezembro, o laboratório Novartis divulgou um aviso mundial baseado num estudo canadense que diz que o medicamento letrozol (Femara) pode causar defeitos congênitos e abortos se usado na reprodução assistida. O mesmo alerta foi distribuído aos médicos pelo governo canadense.
Aprovado em todo o mundo apenas para câncer da mama na mulher na pós-menopausa, a droga é vendida no Brasil desde 1997. Atualmente, é consumida por 3.000 mulheres com câncer.
Nos últimos anos, os médicos perceberam que o remédio também estimula a produção de FSH (hormônio folículo estimulante), melhorando a ovulação de mulheres que não respondiam aos tratamentos convencionais.
Desde então, vários estudos internacionais têm sido apresentados nos congressos de reprodução mostrando que a droga pode ser uma boa opção de indutor de ovulação para uma parcela das mulheres inférteis.
Isso estimulou o uso "off label" do remédio, ou seja, quando a prescrição é feita por conta e risco do médico, sem autorização do laboratório fabricante e da agência reguladora de medicamentos.
Quatro meses após o aviso da Novartis, vários especialistas no Brasil ainda estão indicando o remédio. Alguns alegam que não foram informados sobre o alerta. Outros, cientes, avaliam que o estudo que motivou o alerta é frágil, pois não exclui outros fatores de risco que podem gerar má-formação fetal e abortos, como a gravidez em idade avançada.
Uma médica paulista, que pediu para não ser identificada, ficou apavorada ao ser informada pela Folha do alerta. Duas pacientes dela engravidaram após uma estimulação ovariana induzida pelo remédio. "Agora é rezar para que nada aconteça aos bebês."

Cautela
O ginecologista Eduardo Motta vê com cautela o resultado do estudo canadense. Ele argumenta que as mulheres avaliadas eram mais velhas e também haviam engravidado de gêmeos -fatores que, isolados, já levam a um maior índice de má-formação fetal e abortos- em uma proporção maior do que as mães incluídas no grupo controle.
"Pode ser que o letrozol esteja implicado [nos casos de má-formação], mas também é possível que seja só uma coincidência."
"Trata-se de uma droga excelente, mas talvez deva ser utilizada em grupos mais específicos, como, por exemplo, mulheres abaixo dos 40 anos", afirma.
Para o médico Artur Dzik, chefe do serviço de reprodução do Hospital Pérola Byington, o risco de má-formação fetal é multifatorial. "Depende da idade, da genética e até de fatores ambientais."
"Acho difícil essa droga, usada no início do ciclo [menstrual], bem antes de ela engravidar, causar má-formação fetal. É precoce aboli-la na reprodução."
Para Motta, o alerta foi uma forma de o fabricante se precaver de eventuais problemas com as grávidas que utilizaram o remédio.
Apesar de os médicos alegarem vantagens da droga na ovulação, não há estudos que atestem a segurança do remédio na mulher sadia e em idade fértil, pois os trabalhos que levaram ao seu registro envolveram pacientes com câncer após a menopausa.

Infração
Para o médico Roberto D'Ávila, corregedor do CFM (Conselho Federal de Medicina), os especialistas que prescrevem o Femara à revelia do alerta do laboratório podem ser investigados por infringir o código de ética médico.
Para Rui Ferriani, professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto (SP), o uso do letrozol na reprodução assistida é "mais um exemplo de modismo".
"Os médicos põem em prática terapias que só deveriam ser realizadas experimentalmente, com protocolos de pesquisa aprovados pelos comitês de ética e o consentimento das mulheres."


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