São Paulo, sábado, 24 de junho de 2000


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LETRAS JURÍDICAS

Laico, mas nem tanto

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

S aiu na Folha esta semana: a Suprema Corte dos Estados Unidos reforçou a separação entre religião e Estado ao proibir que estudantes de uma escola pública, na maioria protestantes, rezassem juntos, antes do início dos jogos de futebol. A decisão reconheceu que as orações, apoiadas pela direção da escola, não respeitavam a liberdade de culto dos alunos ligados a outras religiões.
No Brasil, a Constituição republicana de 1891 extinguiu a religião oficial do Estado. Em matéria de fé religiosa, o revogado artigo 5º da Carta Imperial de 1824 era muito restritivo, ao afirmar que a "Religião Católica Apostólica Romana (assim mesmo, tudo em maiúsculas) continuará a ser a Religião do Império". Templos, só os católicos.
É bem verdade que o artigo 179, em 1824, dizia: "ninguém pode ser perseguido por motivo de religião". Logo a seguir, porém, percebia-se a fraqueza da ressalva. A liberdade seria mantida, desde que o fiel de outra religião respeitasse a do Estado e não ofendesse a moral pública, em conceito tão vago que permitia perseguições quando conviesse ao padre ou ao líder político, muitas vezes concentrados na mesma pessoa.
A Constituição republicana acabou com isso. Mesmo os cemitérios, que antes eram controlados pelas irmandades religiosas católicas, passaram a ter estrito caráter secular, admitindo outros cultos, desde que não ofendessem a moral pública e a lei. A primeira Carta da República foi além, ao admitir o exclusivo reconhecimento do casamento civil.
Em tese, portanto, o Brasil é um Estado laico, desligado de qualquer religião, tanto que a atual Constituição assegura "o livre exercício dos cultos religiosos" e garante, "na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias" (artigo 5º, no inciso 6º).
Como é próprio das leis, o Estado laico, no Brasil, não é muito verdadeiro, porque os vínculos com as religiões existem, definidos na própria Carta. Não se tem a religião do Estado, mas o ensino religioso é aceito (embora sem ser obrigatório). O casamento religioso com efeito civil é admitido, desde que obedecidos certos requisitos específicos.
A igualação passa por lances nos quais o velho predomínio do catolicismo (é a minha religião, preciso esclarecer ao leitor) subsiste. O último dia 22, por exemplo, foi feriado nacional, ofendendo o direito ao trabalho de muçulmanos, judeus, xintoístas, budistas e outros, mesmo de alguns cristãos, tendo em vista a origem católica do "Corpus Christi", tanto quanto as orações protestantes na escola pública americana.
Pelo Brasil afora, são dias santificados o de Reis (6 de janeiro), a quinta e a sexta-feira santas (Endoenças e Paixão), o Sábado de Aleluia e, ainda em junho, a Ascensão do Senhor e as chamadas festas juninas, encerradas dia 29, em honra de são Pedro.
A mais evidente desconsideração pelo direito dos que têm outras religiões é o feriado nacional de 12 de outubro, dedicado à padroeira (católica) do Brasil, sem falar no dia de Nossa Senhora da Conceição (8 de dezembro) e até mesmo no Natal, celebrando o nascimento de Jesus Cristo, o mais importante dos dias santificados para nós, católicos.
Cada feriado decretado em homenagem a fato ou pessoa de qualquer religião, proibindo, por exemplo, atividades no trabalho, comércio ou indústria, corresponde a uma inconstitucionalidade, pela ofensa às regras do Estado laico que, em tempos mais recentes, também vêm sendo atingidas pelo forte envolvimento da religião e da política, com recursos captados do povo, alterando o equilíbrio das relações sociais.



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