São Paulo, domingo, 24 de junho de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DEGRADAÇÃO

Em colégio da zona sul, ameaças, professores agredidos, alunos espancados e carros incendiados fazem parte da cartilha

Periferia de SP vive o cotidiano da violência na educação

DÉBORA YURI
DA REVISTA

Terça-feira, 20h40, hora do intervalo na Escola Estadual Padre Tiago Alberione, Cidade Júlia, bairro de periferia da zona sul de São Paulo. Alunos e alunas do período noturno conversam em rodas, fumam, paqueram, fazem piadinhas sobre futebol -como em qualquer colégio.
Algumas imagens, no entanto, não combinam com a hora do recreio. Um carro da Polícia Militar está estacionado dentro do pátio, e três policiais circulam entre os estudantes. No lado de fora, pais e mães se espremem para checar se está tudo bem.
Escola modelo até quatro anos atrás, quando chegou a ser usada como exemplo na campanha eleitoral do governador Mário Covas, a Tiago Alberione foi parar no noticiário policial na semana passada, vítima de uma espiral de violência que inclui ameaças de morte, professores agredidos em sala de aula, carros pichados e incendiados no estacionamento, alunos espancados dentro do banheiro ou em fila.
No começo da semana, apavorados, os professores suspenderam as aulas para pedir mais segurança. As aulas voltaram, mas a rotina pouco mudou.
Cidade Júlia é um daqueles bairros que se encaixam na categoria "favela melhorada", típicos da periferia paulistana: mal iluminados, ruas esburacadas e milhares de barracos. Ali se cumpre fielmente a lei mais respeitada na periferia, a do silêncio.
"Têm garotos de fora que entram na escola porque querem matar alunos, invadem a quadra e dão tiros. No intervalo, você tem que ficar segurando o material para não roubarem. Os professores têm medo e não querem mais dar aula aqui", diz Simone*, 15, do primeiro ano do ensino médio.
A realidade violenta não é monopólio da Tiago Alberione. Segundo pesquisa concluída em dezembro pela Udemo (Sindicato de Especialistas em Educação do Magistério Oficial do Estado de São Paulo), que consultou 496 escolas da rede pública estadual, 81% sofreram algum tipo de violência no ano de 2000. A pesquisa mostrou ainda que 84% registraram agressões ou desacato a professores; 68%, brigas internas envolvendo alunos; 24%, tráfico e consumo de drogas dentro da unidade escolar; 22%, ameaças de morte; 19%, invasão de estranhos; 18%, porte de armas; e 4%, homicídio de alunos.
Mas no caso da escola da Cidade Júlia o que dói, dizem os envolvidos, é o fato de a escola "modelo" ter "degringolado". "As mães faziam fila de madrugada para conseguir colocar seus filhos lá dentro", afirma o líder comunitário Ubiratã Virgínio da Silva, 38.
"É aquela coisa. Um aluno pobre, com pais pobres, vivendo uma vida miserável, e um professor que também tem problemas financeiros. Aí, um fala mais alto e pronto, começa uma briga", diz Adilson, 37, policial militar que há 13 anos faz ronda escolar em 12 escolas da região, incluindo a Tiago Alberione.
Alunos e alguns professores atribuem a derrocada da escola a uma sucessão de direções incompetentes e à violência. Mas o conflito explodiu, dizem, depois de 5 de junho, quando três policiais -um deles identificado como "Diabo Loiro"-, chamados pela escola, teriam espancado um aluno no banheiro da escola.
Adilson não acredita nessa versão. "Todo mundo fala que bateram nele, mas cadê o BO? Por que não deram queixa?" Ele acha que pais e alunos têm sua parcela de responsabilidade. "Olhe o que os seus filhos fazem! Depois vocês vêm aqui na porta reclamar da escola e da polícia. Eles picham os muros, quebram carteiras, criam desordem", afirma.
O policial mora em Vila Clara, também na zona sul. Seus dois filhos (de seis e nove anos) estudam em escola pública. Como o salário é insuficiente para sustentar a família, o policial faz bico no comércio. Somando os dois empregos, ganha cerca de R$ 1.500.
É pouco mais do que os R$ 1.260 recebidos por Antônio, 30, que dá aula na Tiago Alberione há oito anos. Professor em duas escolas públicas, ele trabalha de manhã e à noite, de segunda a sexta. Tem aproximadamente 400 alunos. Não é casado nem tem filhos.
Tem boa relação com os alunos do colégio e é um dos mais respeitados da escola, segundo os estudantes, mas também já sofreu agressão física. "Eu estava dando aula e um menino começou a chutar a porta, queria entrar. Eu gritei com ele, e ele voou para cima de mim. Fiquei calmo, levei na conversa", conta.
Antônio defende os alunos, diz que é preciso abrir um canal de diálogo, ganhar respeito, não impor. "Esses são os professores que se dão bem entre alunos barra-pesada", declara.
"Muitos são perueiros clandestinos, sofrem ameaças ou são office-boys. Nenhum tem dinheiro. É o desemprego, a influência do bairro onde vivem, nenhuma perspectiva de futuro. É um total abandono aliado a uma educação que exclui." Afirma que não adianta endurecer, gritar, ameaçar ou chamar a polícia.
Antônio diz que chegou a conversar com Diego, o aluno supostamente agredido. "Disse para ele sair do meio da confusão e se controlar, para não revidar a agressão." Conta que muitos professores são a favor da expulsão dele. "Eu acho que ele merece uma chance, é um garoto especial."
Personagem central do conflito, Diego, 19, primeiro ano do ensino médio, estuda na Tiago Alberione desde o primário. Todo mundo o conhece, e é apontado como um dos autores do incêndio ao carro de um professor, ocorrido no dia 13. "Não sou cabeça de nada", ele diz, "mas "eles" sempre pegam os inocentes".
Diego diz que apanhou no dia 5 de junho, depois que a escola amanheceu cheia de cartazes que ameaçavam a diretora. A agressão, diz, durou 20 minutos. "Um dos policiais gritava que eu era um vagabundo qualquer, que qualquer dia ia me matar. Levei coronhadas no peito e consigo me lembrar da dor forte dos dois primeiros chutes no saco... Os outros, nem senti mais."
Não faltam histórias para os moradores das imediações: troca de tiros toda madrugada, traficantes que teriam expulsado moradores de quatro casas, uma senhora que foi assassinada por engano quando voltava para casa. Virou rotina. "Não tenho mais medo, já estou acostumada. Olha, são 21h e eu estou na rua", afirma Patrícia, 17, terceiro ano, que estuda na Tiago Alberione desde 1996.
O pesquisador Eduardo Brito, 32, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, aponta outro aspecto de situações como a da Tiago Alberione. "Esse ambiente de exclusão, de miséria, de abandono, vai pouco a pouco minando a capacidade do indivíduo de sonhar, de querer fazer as coisas. Isso é o mais grave, o mais triste."


* Os personagens identificados pelo prenome tiveram a identidade preservada

Leia a reportagem completa no site www.uol.com.br/revista




Texto Anterior: Gilberto Dimenstein: Prefeitura vai intensificar blitz contra migraçãoPor que o presidente da Fiesp pode votar em Lula
Próximo Texto: Há uma crise de gestão, diz secretária
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.