São Paulo, terça-feira, 24 de setembro de 2002

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MARILENE FELINTO

Computador a carvão e presidente intelectual

O fato de o presidente Fernando Henrique Cardoso ter dado um computador como prêmio ao estudante Leonardo Fernandes da Rocha, 11, morador de uma cidade sem luz elétrica, é mais do que uma simples gafe. É um indicador preciso de como o governo dos ricos para os ricos ignora a realidade da maioria da população subordinada a seus ditames excludentes.
Leonardo, aluno da 5ª série de uma escola pública de São João da Ponte (norte de Minas), venceu um concurso nacional de frases sobre educação promovido pelo Ministério da Educação. Ele viajou até Brasília para receber o prêmio das mãos de FHC no último dia 7 de setembro. O estudante, que vive com a família em uma casa de quatro cômodos sem camas suficientes para todos, disse à Folha que quer vender o computador e comprar um lote de terra na cidade.
Que esse desencontro constrangedor tenha se passado no âmbito da educação é também significativo, especialmente num momento em que a propaganda do candidato do governo à Presidência, José Serra (PSDB), tenta desqualificar a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva (PT) porque este não tem "diploma" universitário nem "experiência" administrativa. Ora, nem tanto conhecimento, nem tanta erudição, nem tantos diplomas universitários e honrarias de universidades estrangeiras prepararam FHC para o que se exige do governante máximo da nação: que ele conheça as reais condições em que o povo vive. Falta-lhe percepção, sensibilidade, "experiência" de miséria. Falta-lhe humanidade. Brotam-lhe bolas de papel pela boca, apenas, como disse Guimarães Rosa a respeito dos intelectuais.
"A sabedoria é saber e prudência que nascem do coração. Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco muito, não devem ser, não podem ser intelectuais, pois isso diminuiria sua humanidade. (...) Não suporto essas figuras intelectuais, dos quais se espera que a qualquer momento lhes brotem da boca bolas de papel." (João Guimarães Rosa em "Diálogo com Günter Lorenz", Ficção Completa, vl. 1)
Esse desencontro lamentável só revela o abismo que separa certo tipo de governante brasileiro de seus comandados situados na base da pirâmide da desigualdade, da injustiça social avassaladora. E revela mais: o modo como as classes econômicas dominantes moldam o conhecimento de maneira a promover seus interesses sobre os das classes subordinadas.
É isto: a elite econômica e política quer convencer a plebe de que o discurso sábio e culto (o dela, elite, o do "computador") é não apenas o melhor (porque universal), mas o único capaz de dirigir a plebe.
É uma questão de cultura e democracia, como enxerga com exatidão Marilena Chaui em seu "Cultura e Democracia - O Discurso Competente e Outras Falas": "O discurso sábio e culto, enquanto discurso do universal, pretende unificar e homogeneizar o social e o político, apagando a existência efetiva das contradições e das divisões que se exprimem como luta de classes (...)".
"A suposta universalidade do saber dá-lhe neutralidade e disfarça seu caráter opressor; de outro lado, a "ignorância" do povo serve para justificar a necessidade de dirigi-lo do alto e, sobretudo, para identificar a possível consciência da dominação como o irracional, visto que lutar contra ela seria lutar contra a verdade (o racional) fornecida pelo conhecimento. Dando ao povo o lugar da incultura, o dominante pode afirmar que "a plebe é temível" porque movida por impulsos passionais, de sorte que a razão completa a frase "a plebe é temível quando não teme"."
Quem sabe a plebe, ainda movida a carvão, já não tema queimar bolas e bolas de papel inútil.

E-mail - mfelinto@uol.com.br


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