São Paulo, quinta, 24 de setembro de 1998

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INCULTA & BELA

'Desculpa' e 'desculpe'

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha

Uma amiga esteve em Portugal. Andando pelas históricas ruas de Coimbra -talvez encantada com o que via-, literalmente colidiu com uma senhora, que desabou.
"Desculpa", disse minha amiga. Pobre amiga. Mal sabia que acabara de dar dupla munição à senhora.
O primeiro erro foi andar desatentamente e derrubar a pobre criatura, já distante da tenra idade.
O segundo foi dizer "desculpa" a uma pessoa mais velha e nunca vista antes.
O que se seguiu foi acalorado discurso formalista da vítima: "Jogas-me ao chão e ainda me dás o tu. Quem pensas que és?".
Esquecida das aulas de gramática, minha amiga não entendeu nada do que disse a senhora portuguesa. Considerou-a maluca. De pedra.
Na volta de Portugal, quando me encontrou, relatou-me o ocorrido. Adorei a história. É prova cabalíssima da importância do conhecimento de todas as variantes da língua -a culta incluída, é claro.
Sim, a culta, porque nas cidades médias e grandes de Portugal o que se ouve no dia-a-dia muitas vezes é bem próximo do que no Brasil só se ouve em aulas de gramática.
No caso, o que está em jogo é a diferença entre formalidade e informalidade.
Em espanhol e em italiano, por exemplo, essa diferença é mais do que clara.
"Usted", em espanhol, é tratamento respeitoso. Corresponde a "senhor" ou "senhora" (e não a "você", pelo amor de Deus!). É pronome de terceira pessoa e por isso exige o verbo e os outros pronomes também na terceira pessoa.
Em italiano, o pronome de cerimônia é "lei", também para homens e mulheres e também de terceira pessoa.
Em espanhol, em italiano e no português de Portugal, o pronome de intimidade é "tu", igual nas três línguas.
Se você já se esqueceu das regras de formação do imperativo afirmativo, é bom lembrar que a segunda do singular, ou seja, "tu", vem do presente do indicativo, sem o "s".
Para o verbo "andar", por exemplo, a forma seria "anda" (andas-s=anda): "Como és mole, rapaz. Anda logo!".
O que disse minha amiga? "Desculpa", imperativo da segunda pessoa (desculpas-s=desculpa). Em Portugal, essa forma é usada para "tu", ou seja, para pessoas íntimas, ou muito mais novas.
Dirigindo-se a pessoa mais velha ou desconhecida, emprega-se a terceira pessoa (senhor/senhora): "Desculpe".
Para nós, tudo isso parece um grande absurdo. Não temos o hábito de diferenciar o tratamento pessoal pela forma verbal ou pronominal.
Volto ao assunto na próxima coluna. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

E-mail: inculta@uol.com.br



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