São Paulo, Domingo, 24 de Outubro de 1999
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ARTIGO

O câncer da próstata e o motel da praia do Francês

MIGUEL SROUGI
especial para a Folha



Estava decidido a discorrer sobre o câncer da próstata, li os jornais do dia e quase desisti. Pelo temor de aumentar o desalento. Pensei um pouco e comecei a escrever, seguindo o conselho daquele famoso florentino. Poderia, rapidinho, dar as más notícias e, depois, devagar, contar as boas novas. Com a esperança íntima de diminuir as aflições.
Após os 40 anos de idade, 80% dos homens passam a apresentar um crescimento benigno da próstata, que leva seus portadores a expelir a urina com dificuldade. Ademais, na próstata origina-se o câncer mais frequente do homem, que, de acordo com previsão feita este ano pela American Cancer Society, atingirá 1 de cada 6 indivíduos com mais de 50 anos de idade.
Se as estatísticas norte-americanas forem válidas para o Brasil, e é provável que o sejam nesta área, cerca de 120 mil brasileiros serão acometidos pelo câncer da próstata no ano 2000 e 23 mil morrerão em decorrência dele. O que significa um novo caso a cada quatro minutos e um óbito a cada 20 minutos! A boa notícia: a incidência do câncer da próstata talvez esteja começando a declinar.
Nos Estados Unidos, o número de casos novos entre 1988 e 1992 aumentou 60% e a partir de 1993 diminuiu quase 20%. Esse fenômeno tem uma explicação aceitável. As campanhas preventivas e a realização de novos exames de laboratório revelaram um grande número de doentes, incluindo homens sem sintomas e que ignoravam o mal. Com o esgotamento desse "reservatório" de casos inaparentes, a frequência da doença passou a cair. No Brasil ainda vivemos uma fase de identificação crescente de casos. No entanto, é provável que o mesmo fenômeno auspicioso também aqui se repita, em poucos anos.
O câncer da próstata apresenta duas características peculiares. A sua incidência aumenta com a idade, atingindo quase 50% dos indivíduos com 80 anos e não poupando homem algum que viver até 100 anos. A boa notícia: apenas metade dos homens portadores de câncer da próstata apresentam manifestações clínicas e sofrem as consequências negativas da doença (veja quadro). Nos demais casos esses tumores têm um comportamento indolente, desprovido de qualquer agressividade, e seus portadores morrem por outros motivos, com o câncer, mas não pelo câncer.
As causas do câncer da próstata não são bem conhecidas, mas se sabe que alguns fatores aumentam os riscos da doença. Incluem-se aqui as características raciais e a existência de casos semelhantes na família.
Homens orientais têm menos câncer da próstata do que os ocidentais, e nos Estados Unidos a incidência da doença em negros é cerca de 50% maior do que em brancos. Apesar de subjetiva, a minha impressão é que no Brasil esse câncer atinge com igual frequência ambas as raças.
Estudo realizado pelo dr. D. Steinberg, de Baltimore (EUA), demonstrou que os riscos de câncer da próstata aumentam 2,2 vezes quando um parente de primeiro grau (pai ou irmão) é acometido pelo problema; 4,9 vezes quando dois parentes de primeiro grau são portadores do tumor; e 10,9 vezes quando três parentes de primeiro grau têm a doença.
Nos casos hereditários, o câncer se manifesta mais precocemente, muitas vezes antes dos 50 anos. Por isso, homens com casos na família devem realizar exames preventivos a partir dos 40 anos e não após os 50 anos, como se recomenda habitualmente.
O aparecimento do câncer da próstata não pode ser evitado no momento, porque ainda são desconhecidos os mecanismos que modificam a maquinaria celular, tornando-a maligna. A boa notícia é que algumas medidas talvez reduzam os riscos da doença. Dieta pobre em gordura animal, comum nos países do extremo oriente, provavelmente diminui a incidência desses tumores se for adotada no início da idade adulta. Cereais, frutas e vegetais contendo genisteína, daidzeina enterolactonas (cenoura, brócolis, espinafre, alface, aspargo, ervilha, feijão, soja, melancia, abóbora) inibem o crescimento das células prostáticas em laboratório e provavelmente têm algum valor clínico preventivo.
A ingestão abundante de tomate e seus derivados diminui em 35% os riscos de câncer da próstata, segundo estudos realizados na Universidade de Harvard. O efeito benéfico do tomate resultaria da presença de grandes quantidades de lycopene, um caroteno natural com grande atividade antioxidante. Um grupo de pesquisadores liderados pelo finlandês Olli Heinoven procurou prevenir câncer de pulmão administrando 50 mg ao dia de alfatocoferol, uma das formas naturais da vitamina E, a cerca de 14.500 homens fumantes. De forma desconcertante, como às vezes acontece em ciência, não conseguiram diminuir a incidência de câncer de pulmão, mas observaram uma redução de 32% na frequência de novos casos de câncer da próstata. Finalmente, o selenium também parece ter um efeito protetor contra esses tumores. Na dose de 200 gramas ao dia e ingerido por quatro anos, esse mineral reduz em 60% a incidência da doença.
O câncer da próstata não produz sintomas nas fases iniciais. Com o decorrer do tempo podem surgir dificuldade para expelir a urina, enfraquecimento do jato urinário e aumento do número de micções. Esses sintomas também ocorrem nos casos de crescimento benigno, de modo que a presença deles não indica, necessariamente, a existência de câncer, mas exige, pelo menos, avaliação médica apropriada.
Quando se deseja explorar a presença do câncer na próstata, deve-se recorrer ao toque da glândula e às dosagens no sangue do chamado antígeno prostático específico (ou PSA). Esses dois exames devem ser realizados conjuntamente, já que o toque falha em 30% a 40% dos casos, e o PSA falha em 20%. Executando os dois testes, deixamos escapar menos de 5% dos pacientes acometidos.
A eloquência desses números não impede os homens de sonharem com o dia em que o toque se tornará desnecessário. Enquanto esse dia não chega, vou me conformando com manifestações como: "Doutor, o senhor vai examinar a saída e não a entrada do meu intestino..." ou "Não sei como tem gente que gosta...!". Ao final, quase sempre o desabafo: "Que alívio, pensei que fosse pior". O que prova que é o medo indevido da dor e não o preconceito cultural que assusta o nosso gênero. Até porque não costumo ouvir os mesmos arroubos naqueles que já foram antes examinados. De qualquer forma, para os mais renitentes, gostaria de lembrar que muito pior que o desconforto psicológico de alguns segundos é o flagelo imposto por um câncer descoberto tardiamente.
O PSA, proteína produzida exclusivamente pela próstata, encontra-se aumentado nos pacientes com câncer local, mas também pode se elevar em alguns casos de crescimento benigno ou de infecção da glândula. Por isso, níveis sanguíneos alterados de PSA sempre exigem um estudo médico, mas não indicam necessariamente a existência de câncer. Como mostra o quadro, conhecendo-se as taxas de PSA no sangue e o resultado do toque da próstata, pode-se calcular em cada homem o risco de existir câncer local.
Ao planejar o tratamento do câncer da próstata, os médicos levam em conta a agressividade das células que compõem o tumor e a extensão da doença. A agressividade é expressa por uma escala de graus, conferida no estudo de biopsia e que vai de 2 a 10. Os tumores de graus 2 a 6 são mais brandos. Por outro lado, aqueles classificados como 7 a 10 são mais desfavoráveis e devem ser tratados de forma mais cuidadosa.
A extensão do câncer representa o principal parâmetro para a escolha do método de tratamento. Os tumores localizados dentro da próstata, denominados estágios A e B, às vezes não precisam ser tratados. Quando isso for necessário, pode-se recorrer à cirurgia (prostatectomia radical) ou à radioterapia. Nos casos em que o câncer atinge os envoltórios da próstata, o chamado estágio C, os especialistas costumam indicar tratamento radioterápico. Quando o tumor se estende para outros órgãos, gerando focos adicionais de câncer denominados metástases, a doença é rotulada de estágio D e tratada com a retirada dos testículos ou com hormônios.
O tratamento dos casos mais agressivos de câncer localizado da próstata tem produzido uma polêmica entre os especialistas e, em consequência, alguma aflição nos portadores da doença. Cirurgiões e radioterapeutas têm proclamado que a prostatectomia radical e a radioterapia representam, respectivamente, a maneira ideal para se tratar tais casos. Pedindo que se levasse em conta a minha posição suspeita de cirurgião, gostaria de dizer por que me sinto incomodado com a radioterapia convencional.
Em primeiro lugar, dados levantados pela American Urological Association mostraram que entre 89% e 93% dos pacientes submetidos a cirurgia radical e entre 66% e 86% (menos, portanto) dos casos tratados com radioterapia convencional estavam vivos após dez anos de acompanhamento. Em segundo lugar, cerca de 50% dos pacientes submetidos à radioterapia convencional apresentam focos cancerosos vivos quando a próstata é biopsiada dois anos após o tratamento. Os radioterapeutas dizem que essas lesões residuais são inativas, de comportamento indolente. Podem ter razão, mas esse fenômeno não deixa de ser desconfortável. Na minha concepção, obviamente tendenciosa, câncer indolente é aquele que está dentro de um balde de formol, não dentro do nosso organismo.
Finalmente, a radioterapia externa, divulgada como terapêutica menos agressiva que a cirurgia, não é isenta de problemas. A bem da verdade, a radioterapia não produz incontinência urinária (perdas involuntárias de urina), que incomoda cerca de 3% dos homens submetidos à prostatectomia radical. Contudo, entre 10% e 15% dos pacientes podem desenvolver complicações intestinais molestas (diarréia com ou sem sangue), que persistem por anos. Ademais, os especialistas sempre proclamaram que impotência sexual é incomum após a radioterapia, o que, agora, parece não ser real. Sabemos que a prostatectomia radical realizada por equipes habilitadas produz impotência sexual em 80% dos homens com 70 anos, em 50% dos indivíduos com 65 anos e em 15% dos pacientes com menos de 55 anos. Por outro lado, levantamentos recentes produzidos por radioterapeutas do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, de Nova York (EUA), e da Escola de Medicina Eastern Virginia, de Norfolk (EUA), demonstraram que entre 43% e 60% dos pacientes submetidos à radioterapia desenvolvem impotência sexual, independentemente da idade. Como essa complicação surge um ou dois anos depois do tratamento, ela nem sempre é atribuída ao método, criando a falsa impressão de que a radioterapia da próstata não afeta a função sexual.
Talvez por estarem conscientes das limitações da radioterapia convencional, os radioterapeutas têm explorado duas novas modalidades de irradiação, a braquiterapia e a radioterapia conformada. Na braquiterapia, sementes radioativas de iodo são despejadas no interior da próstata, por meio de agulhas calibrosas introduzidas pela pele. Aplicado por equipes treinadas, esse método reveste-se de grande simplicidade e tem grande apelo, já que o paciente retorna às suas atividades um ou dois dias após o procedimento. Na radioterapia conformada, um feixe mais concentrado de irradiação é aplicado sobre a próstata, potencializando o efeito antitumoral do tratamento. Os resultados iniciais com os dois novos métodos têm sido favoráveis. Contudo quase todos os pacientes com câncer localizado de próstata sobrevivem cinco anos, qualquer que seja o tratamento recebido. É, pois, impossível afirmar, hoje, se essas técnicas são superiores à radioterapia convencional. Na verdade, somente quando surgirem avaliações com dez anos de acompanhamento, ou seja, após o escrutínio do tempo, será possível definir o valor real dessas novas modalidades.
Como procurei mostrar e graças ao esforço de dedicados pesquisadores e especialistas, a maioria dos pacientes com câncer da próstata é atualmente curada do seu mal. O que não é apenas boa, mas ótima notícia. Apesar disso, o tratamento do câncer da próstata ainda envolve controvérsias não bem resolvidas. Em primeiro lugar, fica claro que os especialistas da área têm divergências que não são apenas semânticas. Outro fato: o câncer da próstata se enquadra, como doença, dentro de um espectro que abrange desde casos que não precisam ser tratados até situações em que a terapêutica pouco modificará a evolução desastrosa do mal. Finalmente, todos os métodos de tratamento disponíveis podem comprometer de forma além do razoável a qualidade de vida do doente. Por esses motivos, um especialista só orientará corretamente o tratamento de qualquer caso se, além de bom senso, levar em conta os sentimentos do paciente. Com isso quero dizer que médicos e pacientes, em decisão conjunta, devem optar pela terapêutica mais eficiente, quando a sobrevida for a questão mais relevante, e escolher o tratamento menos agressivo, quando a qualidade de vida for a preocupação principal do doente.
Essa situação me remete a Maceió. Ao visitar a praia do Francês com o amigo Paulo Vitório, me deparei com um motel à beira da estrada: "Cequisabe". Logo imaginei a cara do conquistador não tão bem intencionado ao perguntar para a indefesa o que ela gostaria de fazer naquela noite enluarada. Volto ao câncer da próstata. Os especialistas são sempre tendenciosos, muitos por um impulso natural, alguns por impulsos não tão naturais. Imaginem o que acontecerá com o paciente assustado, frente a um cirurgião intransigente ou a um radioterapeuta inflexível se, ao invés de expressar seus sentimentos pessoais, deixar escapar "cê qui sabe".


Miguel Srougi, 53, é professor titular de urologia da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) e pós-graduado em urologia pela Universidade de Harvard (EUA)






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