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ARTIGO
O câncer da próstata e o motel da praia do Francês
MIGUEL SROUGI
especial para a Folha
Estava decidido a discorrer sobre o câncer da próstata, li os jornais do dia e quase desisti. Pelo
temor de aumentar o desalento.
Pensei um pouco e comecei a escrever, seguindo o conselho daquele famoso florentino. Poderia,
rapidinho, dar as más notícias e,
depois, devagar, contar as boas
novas. Com a esperança íntima
de diminuir as aflições.
Após os 40 anos de idade, 80%
dos homens passam a apresentar
um crescimento benigno da próstata, que leva seus portadores a
expelir a urina com dificuldade.
Ademais, na próstata origina-se o
câncer mais frequente do homem,
que, de acordo com previsão feita
este ano pela American Cancer
Society, atingirá 1 de cada 6 indivíduos com mais de 50 anos de
idade.
Se as estatísticas norte-americanas forem válidas para o Brasil, e
é provável que o sejam nesta área,
cerca de 120 mil brasileiros serão
acometidos pelo câncer da próstata no ano 2000 e 23 mil morrerão em decorrência dele. O que
significa um novo caso a cada
quatro minutos e um óbito a cada
20 minutos! A boa notícia: a incidência do câncer da próstata talvez esteja começando a declinar.
Nos Estados Unidos, o número
de casos novos entre 1988 e 1992
aumentou 60% e a partir de 1993
diminuiu quase 20%. Esse fenômeno tem uma explicação aceitável. As campanhas preventivas e
a realização de novos exames de
laboratório revelaram um grande
número de doentes, incluindo homens sem sintomas e que ignoravam o mal. Com o esgotamento
desse "reservatório" de casos inaparentes, a frequência da doença
passou a cair. No Brasil ainda vivemos uma fase de identificação
crescente de casos. No entanto, é
provável que o mesmo fenômeno
auspicioso também aqui se repita, em poucos anos.
O câncer da próstata apresenta
duas características peculiares. A
sua incidência aumenta com a
idade, atingindo quase 50%
dos indivíduos
com 80 anos e
não poupando
homem algum
que viver até
100 anos. A
boa notícia:
apenas metade
dos homens
portadores de
câncer da próstata apresentam manifestações clínicas
e sofrem as consequências negativas da doença (veja quadro). Nos
demais casos esses tumores têm
um comportamento indolente,
desprovido de qualquer agressividade, e seus portadores morrem
por outros motivos, com o câncer,
mas não pelo câncer.
As causas do câncer da próstata
não são bem conhecidas, mas se
sabe que alguns fatores aumentam os riscos da doença. Incluem-se aqui as características raciais e
a existência de casos semelhantes
na família.
Homens orientais têm menos
câncer da próstata do que os ocidentais, e nos Estados Unidos a
incidência da doença em negros é
cerca de 50% maior do que em
brancos. Apesar de subjetiva, a
minha impressão é que no Brasil
esse câncer atinge com igual frequência ambas as raças.
Estudo realizado pelo dr. D.
Steinberg, de Baltimore (EUA),
demonstrou que os riscos de câncer da próstata aumentam 2,2 vezes quando um parente de primeiro grau (pai ou irmão) é acometido pelo problema; 4,9 vezes
quando dois parentes de primeiro
grau são portadores do tumor; e
10,9 vezes quando três parentes de
primeiro grau têm a doença.
Nos casos hereditários, o câncer
se manifesta mais precocemente,
muitas vezes antes dos 50 anos.
Por isso, homens com casos na família devem realizar exames preventivos a partir dos 40 anos e
não após os 50 anos, como se recomenda habitualmente.
O aparecimento do câncer da
próstata não pode ser evitado no
momento, porque ainda são desconhecidos os mecanismos que
modificam a maquinaria celular,
tornando-a maligna. A boa notícia é que algumas medidas talvez
reduzam os riscos da doença. Dieta pobre em gordura animal, comum nos países do extremo
oriente, provavelmente diminui a
incidência desses tumores se for
adotada no início da idade adulta. Cereais, frutas e vegetais contendo genisteína, daidzeina enterolactonas (cenoura, brócolis, espinafre, alface, aspargo, ervilha,
feijão, soja, melancia, abóbora)
inibem o crescimento das células
prostáticas em laboratório e provavelmente têm algum valor clínico preventivo.
A ingestão abundante de tomate e seus derivados diminui em
35% os riscos de câncer da próstata, segundo estudos realizados na
Universidade de Harvard. O efeito benéfico do tomate resultaria
da presença de grandes quantidades de lycopene, um caroteno
natural com grande atividade
antioxidante. Um grupo de pesquisadores liderados pelo finlandês Olli Heinoven procurou prevenir câncer de
pulmão administrando 50
mg ao dia de
alfatocoferol,
uma das formas naturais
da vitamina E,
a cerca de
14.500 homens
fumantes. De
forma desconcertante, como
às vezes acontece em ciência, não conseguiram diminuir a incidência de
câncer de pulmão, mas observaram uma redução de 32% na frequência de novos casos de câncer
da próstata. Finalmente, o selenium também parece ter um efeito protetor contra esses tumores.
Na dose de 200 gramas ao dia e
ingerido por quatro anos, esse mineral reduz em 60% a incidência
da doença.
O câncer da próstata não produz sintomas nas fases iniciais.
Com o decorrer do tempo podem
surgir dificuldade para expelir a
urina, enfraquecimento do jato
urinário e aumento do número
de micções. Esses sintomas também ocorrem nos casos de crescimento benigno, de modo que a
presença deles não indica, necessariamente, a existência de câncer, mas exige, pelo menos, avaliação médica apropriada.
Quando se deseja explorar a
presença do câncer na próstata,
deve-se recorrer ao toque da glândula e às dosagens no sangue do
chamado antígeno prostático específico (ou
PSA). Esses
dois exames
devem ser realizados conjuntamente, já
que o toque falha em 30% a
40% dos casos,
e o PSA falha
em 20%. Executando os
dois testes, deixamos escapar
menos de 5%
dos pacientes
acometidos.
A eloquência desses números
não impede os homens de sonharem com o dia em que o toque se
tornará desnecessário. Enquanto
esse dia não chega, vou me conformando com manifestações como: "Doutor, o senhor vai examinar a saída e não a entrada do
meu intestino..." ou "Não sei como tem gente que gosta...!". Ao final, quase sempre o desabafo:
"Que alívio, pensei que fosse
pior". O que prova que é o medo
indevido da dor e não o preconceito cultural que assusta o nosso
gênero. Até porque não costumo
ouvir os mesmos arroubos naqueles que já foram antes examinados. De qualquer forma, para os
mais renitentes, gostaria de lembrar que muito pior que o desconforto psicológico de alguns segundos é o flagelo imposto por um
câncer descoberto tardiamente.
O PSA, proteína produzida exclusivamente pela próstata, encontra-se aumentado nos pacientes com câncer local, mas também
pode se elevar em alguns casos de
crescimento benigno ou de infecção da glândula. Por isso, níveis
sanguíneos alterados de PSA
sempre exigem um estudo médico, mas não indicam necessariamente a existência de câncer. Como mostra o quadro, conhecendo-se as taxas de PSA no sangue e
o resultado do toque da próstata,
pode-se calcular em cada homem
o risco de existir câncer local.
Ao planejar o tratamento do
câncer da próstata, os médicos levam em conta a agressividade
das células que compõem o tumor
e a extensão da doença. A agressividade é expressa por uma escala
de graus, conferida no estudo de
biopsia e que
vai de 2 a 10.
Os tumores de
graus 2 a 6 são
mais brandos.
Por outro lado,
aqueles classificados como 7
a 10 são mais
desfavoráveis e
devem ser tratados de forma
mais cuidadosa.
A extensão
do câncer representa o principal parâmetro
para a escolha do método de tratamento. Os tumores localizados
dentro da próstata, denominados
estágios A e B, às vezes não precisam ser tratados. Quando isso for
necessário, pode-se recorrer à cirurgia (prostatectomia radical)
ou à radioterapia. Nos casos em
que o câncer atinge os envoltórios
da próstata, o chamado estágio C,
os especialistas costumam indicar
tratamento radioterápico. Quando o tumor se estende para outros
órgãos, gerando focos adicionais
de câncer denominados metástases, a doença é rotulada de estágio D e tratada com a retirada
dos testículos ou com hormônios.
O tratamento dos casos mais
agressivos de câncer localizado
da próstata tem produzido uma
polêmica entre os especialistas e,
em consequência, alguma aflição
nos portadores da doença. Cirurgiões e radioterapeutas têm proclamado que a prostatectomia radical e a radioterapia representam, respectivamente, a maneira
ideal para se tratar tais casos. Pedindo que se levasse em conta a
minha posição suspeita de cirurgião, gostaria de dizer por que me
sinto incomodado com a radioterapia convencional.
Em primeiro lugar, dados levantados pela American Urological Association mostraram que
entre 89% e 93% dos pacientes
submetidos a cirurgia radical e
entre 66% e 86% (menos, portanto) dos casos tratados com radioterapia convencional estavam vivos após dez anos de acompanhamento. Em segundo lugar, cerca
de 50% dos pacientes submetidos
à radioterapia convencional
apresentam focos cancerosos vivos quando a próstata é biopsiada dois anos após o tratamento.
Os radioterapeutas dizem que essas lesões residuais são inativas,
de comportamento indolente. Podem ter razão, mas esse fenômeno não deixa de ser desconfortável. Na minha concepção, obviamente tendenciosa, câncer indolente é aquele que está dentro de
um balde de formol, não dentro
do nosso organismo.
Finalmente, a radioterapia externa, divulgada como terapêutica menos agressiva que a cirurgia, não é isenta de problemas. A
bem da verdade, a radioterapia
não produz incontinência urinária (perdas involuntárias de urina), que incomoda cerca de 3%
dos homens submetidos à prostatectomia radical. Contudo, entre
10% e 15% dos pacientes podem
desenvolver complicações intestinais molestas (diarréia com ou
sem sangue), que persistem por
anos. Ademais, os especialistas
sempre proclamaram que impotência sexual é incomum após a
radioterapia, o que, agora, parece
não ser real. Sabemos que a prostatectomia radical realizada por
equipes habilitadas produz impotência sexual em 80% dos homens
com 70 anos, em 50% dos indivíduos com 65 anos e em 15% dos
pacientes com menos de 55 anos.
Por outro lado, levantamentos recentes produzidos por radioterapeutas do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, de Nova York
(EUA), e da Escola de Medicina
Eastern Virginia, de Norfolk
(EUA), demonstraram que entre
43% e 60% dos pacientes submetidos à radioterapia desenvolvem
impotência sexual, independentemente da
idade. Como
essa complicação surge um
ou dois anos
depois do tratamento, ela
nem sempre é
atribuída ao
método, criando a falsa impressão de que
a radioterapia
da próstata
não afeta a
função sexual.
Talvez por estarem conscientes
das limitações da radioterapia
convencional, os radioterapeutas
têm explorado duas novas modalidades de irradiação, a braquiterapia e a radioterapia conformada. Na braquiterapia, sementes
radioativas de iodo são despejadas no interior da próstata, por
meio de agulhas calibrosas introduzidas pela pele. Aplicado por
equipes treinadas, esse método
reveste-se de grande simplicidade
e tem grande apelo, já que o paciente retorna às suas atividades
um ou dois dias após o procedimento. Na radioterapia conformada, um feixe mais concentrado de irradiação é aplicado sobre
a próstata, potencializando o
efeito antitumoral do tratamento. Os resultados iniciais com os
dois novos métodos têm sido favoráveis. Contudo quase todos os
pacientes com câncer localizado
de próstata sobrevivem cinco
anos, qualquer que seja o tratamento recebido. É, pois, impossível afirmar, hoje, se essas técnicas
são superiores à radioterapia
convencional. Na verdade, somente quando surgirem avaliações com dez anos de acompanhamento, ou seja, após o escrutínio do tempo, será possível definir
o valor real dessas novas modalidades.
Como procurei mostrar e graças
ao esforço de dedicados pesquisadores e especialistas, a maioria
dos pacientes com câncer da próstata é atualmente curada do seu
mal. O que não é apenas boa, mas
ótima notícia. Apesar disso, o tratamento do câncer da próstata
ainda envolve controvérsias não
bem resolvidas. Em primeiro lugar, fica claro que os especialistas
da área têm divergências que não
são apenas semânticas. Outro fato: o câncer da próstata se enquadra, como doença, dentro de um
espectro que abrange desde casos
que não precisam ser tratados até
situações em que a terapêutica
pouco modificará a evolução desastrosa do mal. Finalmente, todos os métodos de tratamento
disponíveis podem comprometer
de forma além do razoável a qualidade de vida do doente. Por esses motivos, um especialista só
orientará corretamente o tratamento de qualquer caso se, além
de bom senso, levar em conta os
sentimentos do paciente. Com isso quero dizer que médicos e pacientes, em decisão conjunta, devem optar pela terapêutica mais
eficiente, quando a sobrevida for
a questão mais relevante, e escolher o tratamento menos agressivo, quando a qualidade de vida
for a preocupação principal do
doente.
Essa situação me remete a Maceió. Ao visitar a praia do Francês
com o amigo
Paulo Vitório,
me deparei
com um motel
à beira da estrada: "Cequisabe". Logo
imaginei a cara do conquistador não tão
bem intencionado ao perguntar para a
indefesa o que
ela gostaria de
fazer naquela
noite enluarada. Volto ao câncer
da próstata. Os especialistas são
sempre tendenciosos, muitos por
um impulso natural, alguns por
impulsos não tão naturais. Imaginem o que acontecerá com o paciente assustado, frente a um cirurgião intransigente ou a um radioterapeuta inflexível se, ao invés de expressar seus sentimentos
pessoais, deixar escapar "cê qui
sabe".
Miguel Srougi, 53, é professor titular de
urologia da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) e pós-graduado em urologia pela Universidade de Harvard (EUA)
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