São Paulo, Domingo, 24 de Outubro de 1999
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GILBERTO DIMENSTEIN

Sinal de cretinice

Graças aos novos recursos tecnológicos, as máquinas aprimoraram as fotografias do cérebro, lançando descobertas sobre seu funcionamento -inusitados detalhes dessas fotos mostraram a importância de estimular por meio de jogos, brincadeiras e conversas as crianças de 0 a 3 anos de idade.
Cientistas viram como esses estímulos produzem conexões cerebrais nas crianças, capacitando-as melhor ao aprendizado e desenvolvendo a inteligência. Essas conexões seriam algo semelhante a uma musculatura.
Essas descobertas incitaram, em várias partes do planeta, governantes a pensar estratégias para estimular e enriquecer o capital humano, investindo mais na educação dos bebês e das crianças na fase da pré-escola.
Uma tarefa complexa: envolve, ao mesmo tempo, melhorar o atendimento da família e conscientizá-la de seu papel na formação da criança.
É uma consequência absolutamente óbvia -a riqueza de uma nação está na riqueza de seus cérebros.
As estatísticas oficiais revelam que no Brasil vivemos uma calamidade pública quando analisados os números do atendimento da faixa etária de 0 a 6 anos -esse período abrange o que se convencionou chamar de educação infantil.
Apenas alguns indícios do descalabro. Em 6.174 pré-escolas, atendendo mais de 120 mil crianças, não existe, pasmem, abastecimento de água.
Não há luz elétrica em 20% dos estabelecimentos -significa que ali não entra uma televisão, muito menos um computador.
Pior ainda: quase 60% das crianças vão a escolas sem sistema sanitário adequado.
Cerca de 73% das pré-escolas não dispõem de parque infantil; sabe-se lá onde e como brincam.
Para resumir, basta saber que, no ano passado, houve 200 mil matrículas a menos na pré-escola.
A situação é tão ou mais grave nas creches, fase inicial da educação infantil. São, em essência, depósitos humanos fora das prioridades públicas.
Apenas 800 mil crianças são atendidas nas creches -e, pior, com péssimo atendimento. De 0 a 3 anos, estima-se que existam 12 milhões de brasileiros.
Raros temas são tão importantes para o desenvolvimento social do país. E raros temas são tão esquecidos -o que demonstra uma pasmaceira coletiva.
Importante porque, como demonstram as descobertas científicas, cultivar crianças nessa faixa etária é decisivo para o aprendizado; as nações mais ricas já sabem e investem em programas.
Portanto, perdemos espaço na guerra da produtividade; estamos, assim, atirando em nosso próprio pé.
Mais importante -e, mais uma vez, óbvio- é que o atendimento dessa faixa etária serviria como política compensatória à pobreza.
No Brasil, crianças cuidam de crianças; os pais passam o dia fora, em busca de sustento.
A falta de estímulo durante a primeira fase da vida já coloca os mais pobres com as chances danificadas; chances que vão, ano a ano, se perdendo, numa contagem regressiva.
Os dados oficiais indicam que, cada vez mais, a mulher se vê obrigada a assumir a chefia da família, beirando o desamparo; creche ou pré-escola diminuiria o desamparo.
Só vamos sair da pasmaceira quando se pensar em educação desde o momento em que a criança nasce -exatamente como ocorre com as crianças mais ricas.
PS - É surpreendente como a imensa maioria das lideranças sindicais não consegue colocar em seu discurso a obsessão pela educação.
É nas escolas públicas que estudam os filhos dos trabalhadores; é ali onde se vai decidir a chance ou não de progresso daqueles meninos e meninas.
Sem ofensa: é mais um eloquente sinal da ignorância brasileira.

E-mail: gdimen@uol.com.br


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