São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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Na Argentina, militar cria filho de desaparecido

LÉO GERCHMANN
DA AGÊNCIA FOLHA, EM PORTO ALEGRE

Na Argentina, o regime militar (1976-83) deixou uma herança particularmente dolorosa no campo das relações familiares. Crianças foram adotadas por militares após terem seus pais mortos pelo governo.
O tema é tão delicado que a associação Madres de la Plaza de Mayo, principal grupo de direitos humanos que trata do período ditatorial na Argentina, prefere não interferir quando tem conhecimento de um caso desses.
""Sabemos de meninos que viveram com famílias adotivas, de militares, após seus pais terem desaparecido. Não é fácil alguém descobrir que não é filho de quem pensava ser e, além disso, que os pais adotivos assassinaram seus verdadeiros pais. Hoje, esses filhos são adultos e devem saber o que fazem. Procuramos não interferir. As reações são dispersas, variáveis", declarou à Agência Folha a secretária das Madres de la Plaza de Mayo, Evel Petrini.

Compreensão
"Com os meninos que quiseram rever sua história ou que foram levados para seus avós e trataram de lutar ao nosso lado por um mundo melhor, repetindo o que seus pais assassinados haviam feito, damos todo o apoio."
Em relação a quem quis ficar com os pais adotivos, as Madres de la Plaza de Mayo mostram compreensão pela escolha.
""Há crianças que não quiseram suas famílias verdadeiras, que disseram estar bem. Há até quem se recuse a fazer testes de DNA. Não pode haver imposições. A história por si só já é um trauma muito grande", diz Evel Petrini.
""Tudo é muito delicado. Nós nunca quisemos, por exemplo, qualquer tipo de reparação econômica pelo que ocorreu a nós e a nossos filhos. Vida vale vida, de nada adianta darem dinheiro como compensação."
Emiliano Huervalino, 24, é caso típico em um universo de mais de 500 crianças argentinas que tiveram de recomeçar a vida a partir de um trauma relacionado às suas origens. Ele foi o primeiro bebê nascido na Esma (Escola de Mecânica da Marinha) a ser devolvido para a família de pais desaparecidos durante a ""guerra suja". Apenas cem desse total vivem com suas famílias naturais.
Os pais de Emiliano, Oscar Lautaro Huervalino, 22, e Mirtha Monica Alonzo, 23, grávida de seis meses, foram dois dos 30 mil desaparecidos argentinos.
""Eu sinto asco quando vejo um militar uniformizado", diz Emiliano Huervalino.
Ele integra o MAS (Movimento ao Socialismo) e o grupo Hijos (filhos, em espanhol), palavra formada pelas iniciais de Hijos por la Identidad y la Justicia y contra el Olvido y el Silencio (filhos pela identidade e a justiça e contra o esquecimento e o silêncio). Sua terapia é conviver com os companheiros de trauma, como quem se entende ""só pelo olhar". Ao ser levado para uma psicóloga aos 8 anos, não se adaptou e parou na segunda sessão.


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