|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
Paixão virtual
Concurso realizado pela internet escolhe a mais bela mulher virtual. Começou na semana passada a corrida
para eleger a primeira miss Digital
World. Folha Informática,
19.nov.2003
Aí está a minha chance,
pensou, quando leu a notícia sobre o concurso. Criar mulheres virtuais era coisa na qual
tinha prática; havia meses vinha
se entregando a esse exercício solitário. Que era, de certa forma,
uma compensação. Um divórcio
tempestuoso deixara-o traumatizado; vivia sozinho, agora, no pequeno apartamento emprestado
por um amigo, entregue a seu trabalho como designer independente e a sombrias ruminações sobre
a existência. A perspectiva do
concurso teve sobre ele um efeito
mágico; fez com que se sentisse
disposto, animado, excitado mesmo -como se estivesse tendo um
caso.
E estava tendo um caso. Com a
mulher que, aos poucos, nascia
em sua mente e na tela do computador. Ele tinha uma grande coleção de fotos de jovens belíssimas,
fotos que de vez em quando serviam de consolo para as suas noites de insônia. E, com a ajuda do
computador, começou a criar a
mulher de seus sonhos: a boca de
uma, os olhos de outra, o narizinho de uma terceira. Quando terminou, viu que até mesmo os seus
sonhos tinham sido superados; o
rosto que aparecia na tela era
deslumbrante, para dizer o mínimo. Uma mulher belíssima, certamente a mais bela mulher de todos os tempos.
Ele não podia deixar de mirá-la. Às vezes, até levantava no
meio da noite para ficar ali, extasiado, diante do monitor. Àquela
altura, já havia desistido do concurso. Não queria repartir aquela
visão maravilhosa com ninguém,
nem mesmo mediante um valioso
prêmio. A musa virtual era dele
-e só dele. Um segredo que levaria para o túmulo.
O destino quis diferente. Uma
tarde, o dono do apartamento
apareceu por ali sem avisar -tinha a chave- e surpreendeu-o
ao computador. Olhou a tela,
aparentemente sem maior interesse, mas de repente franziu a
testa:
- Espere um pouco: eu já vi essa
mulher.
Onde a vira era algo que não sabia dizer, mesmo porque viajava
muito; poderia ter sido em outra
cidade, em outro país até. Comentou, despreocupado, aquela
incrível coincidência, e depois de
dizer que queria o apartamento
de volta, foi-se.
Ele ficou ali, arrasado. Com
uma simples frase, o amigo (amigo?) tinha destruído o seu sonho.
O fato de que a mulher pudesse
existir na realidade acabava de
vez com todas as suas fantasias.
Só lhe restava uma coisa a fazer, e
ele a fez: deletou a imagem. O lindo rosto desfez-se para sempre.
Uma coisa que nem Deus, em seus
momentos de maior desilusão
com os humanos, chegou a fazer.
A verdade, porém, é que Deus não
tinha computador.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
Texto Anterior: Falta conscientização, diz dirigente Próximo Texto: Consumo: Empresária critica promoção do supermercado Pão de Açúcar Índice
|