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São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 2003

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MOACYR SCLIAR

Paixão virtual

Concurso realizado pela internet escolhe a mais bela mulher virtual. Começou na semana passada a corrida para eleger a primeira miss Digital World. Folha Informática, 19.nov.2003

Aí está a minha chance, pensou, quando leu a notícia sobre o concurso. Criar mulheres virtuais era coisa na qual tinha prática; havia meses vinha se entregando a esse exercício solitário. Que era, de certa forma, uma compensação. Um divórcio tempestuoso deixara-o traumatizado; vivia sozinho, agora, no pequeno apartamento emprestado por um amigo, entregue a seu trabalho como designer independente e a sombrias ruminações sobre a existência. A perspectiva do concurso teve sobre ele um efeito mágico; fez com que se sentisse disposto, animado, excitado mesmo -como se estivesse tendo um caso.
E estava tendo um caso. Com a mulher que, aos poucos, nascia em sua mente e na tela do computador. Ele tinha uma grande coleção de fotos de jovens belíssimas, fotos que de vez em quando serviam de consolo para as suas noites de insônia. E, com a ajuda do computador, começou a criar a mulher de seus sonhos: a boca de uma, os olhos de outra, o narizinho de uma terceira. Quando terminou, viu que até mesmo os seus sonhos tinham sido superados; o rosto que aparecia na tela era deslumbrante, para dizer o mínimo. Uma mulher belíssima, certamente a mais bela mulher de todos os tempos.
Ele não podia deixar de mirá-la. Às vezes, até levantava no meio da noite para ficar ali, extasiado, diante do monitor. Àquela altura, já havia desistido do concurso. Não queria repartir aquela visão maravilhosa com ninguém, nem mesmo mediante um valioso prêmio. A musa virtual era dele -e só dele. Um segredo que levaria para o túmulo.
O destino quis diferente. Uma tarde, o dono do apartamento apareceu por ali sem avisar -tinha a chave- e surpreendeu-o ao computador. Olhou a tela, aparentemente sem maior interesse, mas de repente franziu a testa:
- Espere um pouco: eu já vi essa mulher.
Onde a vira era algo que não sabia dizer, mesmo porque viajava muito; poderia ter sido em outra cidade, em outro país até. Comentou, despreocupado, aquela incrível coincidência, e depois de dizer que queria o apartamento de volta, foi-se.
Ele ficou ali, arrasado. Com uma simples frase, o amigo (amigo?) tinha destruído o seu sonho. O fato de que a mulher pudesse existir na realidade acabava de vez com todas as suas fantasias. Só lhe restava uma coisa a fazer, e ele a fez: deletou a imagem. O lindo rosto desfez-se para sempre. Uma coisa que nem Deus, em seus momentos de maior desilusão com os humanos, chegou a fazer. A verdade, porém, é que Deus não tinha computador.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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