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GILBERTO DIMENSTEIN
Meu inesquecível janeiro em São Paulo
Nasci no Ibirapuera, depois
morei na Vila Buarque,
mudei-me para o Bexiga e agora
estou na Vila Madalena. Sou,
portanto, um paulistano de sorte.
Consegui viver cercado, nesses
bairros, de natureza, artistas, intelectuais e boêmios. Gosto muito
de morar aqui; poderia, se quisesse, ter ficado em Nova York,
mas, sinceramente, considero
São Paulo mais interessante.
Gosto, mas não consigo sentir orgulho da cidade. Temos, de fato,
o que comemorar nessa festa de
450 anos?
À falta de beleza natural somaram-se degradação urbana, violência e miséria, criando uma comunidade de seres acuados. As
crianças perderam as ruas para
brincar; os pedestres perderam as
calçadas; as casas perderam o direito de deixar as janelas abertas.
As madrugadas perderam a inocência. Perdemos até a garoa.
A educação pública é ruim, o
transporte, precário, os carros
congestionam o tráfego e fazem
com que, em alguns horários e locais, andar a pé seja mais veloz.
Viramos uma imensa periferia
salpicada de ilhas de qualidade
de vida, onde imperam exércitos
de valets, de flanelinhas, de pedintes, de seguranças privados
protegendo casas e edifícios que
fazem lembrar edificações medievais. Nem mesmo aprendemos a enfrentar as seculares enchentes.
Apesar disso tudo -e das minhas noites insones à espera da
chegada dos filhos adolescentes e,
devido a um assalto, de ter sido
obrigado a espalhar, na minha
casa, engenhocas de segurança
com as quais mal consigo lidar-
, estou convencido de que há motivos para comemorar. Não comemoro, porém, o que fomos,
mas o que estamos começando a
ser.
São Paulo está metida em uma
extraordinária efervescência, o
que faz daqui um fértil laboratório. A cidade ficou, paradoxalmente, pior, no entanto mais interessante. Olhando da planície a
modorra imponente da reforma
ministerial, tramada no planalto, sinto-me ainda mais entusiasmado pela singularidade de uma
comunidade.
Tenho testemunhado a disseminação de organizações de
bairro e até mesmo de rua, interferindo nos debates urbanos,
apoiados na imprensa e no Ministério Público. Indivíduos, empresas e associações assumem
praças, monumentos, parques,
canteiros; entidades não-governamentais desenvolvem experiências nas áreas de educação,
saúde, ambiente ou cultura, buscando parcerias com o setor público.
Apesar da lentidão e incompetência crônica dos governos, já se
vêem, embora esparsamente, integrações de ações conduzidas
nos vários níveis de poder; muitos programas de distribuição de
renda contemplam redes formadas por verbas federais, estaduais
e municipais, numa intricada
tecnologia social.
Pela primeira vez em sua história, São Paulo começa a mudar o
sentido de sua expansão, valorizando as regiões centrais. Não é
pouca coisa nessa trágica rotina
de periferização. Insisto que, em
nenhuma parte do mundo,
atualmente, existem tantas obras
em uma região central, o que se
deve à conjunção de investimentos públicos federais, estaduais e
municipais e privados.
Empresários organizam-se para repovoar a orla ferroviária
-são 135 quilômetros de linhas
férreas somente dentro da cidade-, criando novos bairros em
áreas que, devido à debandada
das indústrias, estão abandonadas. E, aproveitando os trilhos,
terão um transporte de qualidade. É a maior fronteira urbana
do planeta a ser desbravada e
recolonizada.
Tudo isso está ocorrendo porque chegamos ao limite de uma
cidade inviável, na qual a violência é mais uma conseqüência do
descuido e da desagregação. Desfez-se a idéia de que estamos numa coletividade. Mas, devido à
força econômica, o capital humano conseguiu prosperar e nunca
deixou de atrair e reter pessoas
criativas, seduzidas pela possibilidade de prosperar.
Por isso, este mês de janeiro será, para mim, inesquecível. Não
me lembro de ter visto aqui tanta
gente fazendo tanta coisa interessante, em uma profusão de exposições, shows, concertos, inaugurações de museus, palestras, vídeos, livros. É como se a arte vencesse o medo e estabelecesse um
marco da consciência de uma coletividade.
É como se os seres sitiados saíssem para fora e mostrassem toda
a criatividade de um agrupamento humano. Aparece, então,
a melhor de nossas paisagens,
que é a paisagem humana. Somos, afinal, um lugar em que
qualquer indivíduo que se preze
sempre tem um projeto na cabeça.
Essa deliciosa perspectiva, mesmo que experimentada em uma
festividade, não tem volta -por
isso, comemoro.
PS - Peço desculpa pelo bairrismo explícito, mas quando imagino um futuro melhor para São
Paulo visualizo uma imensa Vila
Madalena, onde ainda se consegue andar a pé nas ruas, passeando entre artesãos, artistas,
intelectuais e boêmios. É aconchegante voltar para casa à noite
e ouvir as pessoas conversando e
rindo nos bares ou nas esquinas.
É um bairro em que sobrevive,
aqui e ali, a imagem de crianças
brincando nas ruas e de senhoras
na frente de suas casas paparicando. Junto com o provincianismo, existe uma força cosmopolita de seus designers, produtores
de vídeo, fotógrafos. O inesquecível deste janeiro é que, mesmo
que episodicamente, senti o gosto
de ver São Paulo como uma gigantesca Vila Madalena.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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