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FORA DO ARMÁRIO
Documentos localizados em Portugal revelam que Luís Gomes Godinho foi preso em 1646 acusado de sodomia
Inquisição flagrou primeiro gay de SP, diz pesquisador
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
"Magro, alto de corpo, gentil-homem de rosto, tira a mulato,
cabelo crespo e pouco barba." Tinha 32 anos e "alguns princípios
de gramática". Era assim, segundo descrição dos inquisidores feita em 1646, o primeiro gay de São
Paulo a ter a sua documentação
encontrada em Portugal.
A descoberta foi feita pelo antropólogo Luiz Mott, 57, professor aposentado da Universidade
Federal da Bahia, na Torre do
Tombo, em Lisboa. Lá, estão arquivadas cerca de 50 mil páginas
manuscritas sobre as 4.419 denúncias contra homossexuais feitas pela Inquisição, dos quais 30
foram condenados à fogueira.
Chamava-se Luís Gomes Godinho o ex-soldado e ex-criado que
embarcou para o Brasil em 1642
para escapar da Inquisição em
Lisboa. Não deu certo o plano de
viver em paz nos trópicos. Quatro
anos depois, no dia 14 de junho de
1646, ele seria preso na então vila
de São Paulo sob a acusação de ser
um "sodomita devasso".
Ficou em prisão domiciliar em
São Paulo (porque a cadeia não
oferecia "segurança"), teve de pagar 11 índios para levar seus bens
até o Rio e de lá foi enviado para
Lisboa, numa viagem de 112 dias.
O número de índios contratados e seus bens sugerem que ele
não era um fugitivo miserável, segundo Mott. "Pela quantidade de
pano, acho que ele era mascate ou
iria abrir uma venda", arrisca.
A cama com que foi conduzido
de São Paulo para o Rio, não citada em sua lista de bens, é outro sinal de riqueza. No final do século
16, havia só duas camas em São
Paulo, segundo o historiador
Afonso D'Escragnolle Taunay
-a maioria dormia em redes. A
vila era tão reles à época que não
tinha mais que 5.000 moradores.
A vida sexual de Godinho em
São Paulo é um mistério. O único
fato registrado pela Inquisição é
que viajou ao Rio com Vicente de
Gouvêa, "um camarada seu". Camarada, como registram o Aurélio e um dicionário mais antigo,
como o de Antonio de Morais Silva (1789), quer dizer "muito amigo", "companheiro", "amásio".
Já as peripécias dele em Portugal são extremamente detalhadas
na confissão feita ao Santo Ofício
por uma razão religiosa, segundo
o historiador Ronaldo Vainfas,
professor da Universidade Federal Fluminense. Nos casos de homossexualismo masculino, interessava à Inquisição provar se
houve o que se chamava "sodomia perfeita" -a combinação de
penetração anal com ejaculação.
Para que fosse aplicada a pena
de morte, de acordo com Mott, a
Inquisição teria que provar que o
sodomita participou de duas relações (seja como ativo ou passivo)
com ejaculação anal.
Sob pressão dos inquisidores,
Godinho confessou mais de duas
dezenas de atos homoeróticos,
como "agente e paciente". Contou que foi possuído de "ilharga"
("de ladinho") pelo seu patrão,
que participou de um ato de "sodomia completa" com um sacristão e de outro incompleto com
um preso. Relatou que fizera parte de uma "suruba" com seis sodomitas, entre os quais um padre
e um militar, e que já participara
de vários "molícies".
O termo, diz Mott, designa os
atos sem ejaculação, como "punheta" e "coxeta" (relação restrita
às coxas), citados aos montes nos
processos da Inquisição.
O antropólogo acredita que o
Santo Ofício acabou estimulando
esse tipo de carinho entre os homossexuais e vê paralelos com o
que ocorreu nas últimas duas décadas, depois da ameaça do vírus
da Aids: "Na Inquisição, os gays
mudaram o comportamento e
evitavam a ejaculação para fugir
da fogueira. Com a Aids, aconteceu algo muito parecido: ninguém quer morrer, é claro".
Após passar um ano nos cárceres do Rossio, Godinho recebeu
sua sentença no auto-de-fé realizado em 15 de dezembro de 1647.
Não foi enviado à fogueira, como
outro sodomita que estava preso
com ele, mas foi açoitado até sangrar e condenado a remar para
sempre nas galés do rei.
Após três anos de pena, Godinho fez um pedido ao "senhor inquisidor": queria que o degredo
nas galés fosse comutado para outro degredo qualquer "já que está
tolhido de frialdades e não se levante nem pode andar".
O Santo Ofício aceitou o pedido,
Godinho foi enviado para Angola
e nunca mais se ouviu falar dele.
A história de Godinho é a jóia da
coroa de um livro que Mott prepara para os 450 anos de São Paulo, batizado "A Paulicéia Desvairada Fora do Armário: a Homossexualidade em São Paulo. 1554-2004". Ele diz saber, obviamente,
que antes de Godinho devem ter
existido outros homossexuais em
São Paulo, "mas não sabemos nada porque a Inquisição não havia
visitado a vila".
Em Olinda, por exemplo, há documentação sobre um gay em
1547. Na Bahia e em Pernambuco,
mais de 30 "fanchonos" (gays de
comportamento efeminado) são
denunciados em 1591 e 1592.
No século 20, porém, São Paulo
abriga uma constelação gay sem
igual, segundo Mott. Entre os famosos que estão no armário, pretende incluir no livro o escritor
Mário de Andrade (a quem Oswald de Andrade chamava maldosamente de "miss São Paulo"
depois que brigaram), o inventor
Santos Dumont, o paisagista Burle Marx e até Mazzaroppi. Do cômico de estilo caipira, Mott diz ter
um relato do ator David Cardoso,
segundo o qual o diretor convidou-lhe para dançar e meteu a
mão onde ele não imaginava.
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