São Paulo, segunda-feira, 25 de março de 2002

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EDUCAÇÃO

Afirmação é de Petronilha Gonçalves e Silva, primeira negra a ocupar uma vaga no CNE, conselho que auxilia o ministério

"Racismo expulsa criança negra da escola"

ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO

A professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, 59, será a primeira negra a ocupar uma vaga no Conselho Nacional de Educação (CNE). Sua indicação foi oficializada no "Diário Oficial" da União na segunda-feira passada pelo ministro Paulo Renato Souza (Educação) e por FHC.
A escolha de uma negra para uma das 24 cadeiras não se deu por acaso. Fazia parte de uma promessa de Paulo Renato de incluir um representante dos negros e dos índios no conselho. A representante dos índios é a professora Francisca Novantino Pinto de Angelo.
No caso de Petronilha, pesou o fato de sua produção acadêmica ter como foco a presença do negro na educação brasileira. Para ela, as desigualdades raciais na educação permanecem não por causa da falta de acesso ao ensino básico, mas pela ausência de uma política que estimule a permanência do negro na sala de aula.
Além de fatores como a necessidade de trabalhar mais cedo para ajudar a família, Petronilha cita o racismo e a falta de imagens do negro nos livros didáticos como elementos que expulsam a criança negra da escola.
Segundo ela, o problema é de falta de conhecimento real da história dos negros no Brasil. Uma história que começa, como lembra, na África, e não na chegada dos escravos em solo brasileiro.
Soluções para esses problemas, diz a professora, devem ser discutidas no CNE, órgão que tem a função de auxiliar o MEC na execução e elaboração de normas e políticas públicas para o ensino.
A história dos negros foi ensinada para Petronilha por sua família, e não na escola onde estudou, em Porto Alegre (RS). Ela conta que suas avós, mesmo negras, chegaram ao nível máximo de escolarização permitido a uma mulher no início do século passado.
Petronilha seguiu pelo mesmo caminho. Após seu doutorado em ciências humanas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fez pós-doutorado em teoria da educação na Universidade da África do Sul, em Pretória, onde foi professora visitante. Hoje, ela participa da coordenação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Veja os principais trechos de sua entrevista à Folha.

Folha - A escola básica está praticamente universalizada no Brasil, com quase todas as crianças tendo acesso a ela. No entanto a impressão é que a diferença entre negros e brancos não diminui. O que está errado?
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva -
As escolas estão recebendo as crianças negras em suas salas iniciais. Até a 4ª série do ensino fundamental, o atendimento é até razoável. O problema é que não há políticas públicas para garantir a permanência dessas crianças na escola. Uma das razões para a evasão é que as famílias precisam de que os filhos ajudem no orçamento, e muitas crianças negras têm de começar a trabalhar.
Além disso, inúmeros estudos têm mostrado que o racismo expulsa a criança da escola. Um dos primeiros foi feito em 1985 pelo professor Luiz Roberto Gonçalves, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), e falava sobre o silêncio do professor. Ele mostrava que a criança negra sofre discriminação de outros colegas, mas o professor não sabe como lidar com isso ou não vê.

Folha - Esse é um problema só do professor?
Petronilha -
Não. Há uma ausência quase absoluta de imagens da população negra nas escolas. A gente vê figuras e cartazes da classe média, mas não vemos do pobre, do negro, do gordo. No caso do povo negro, a história no Brasil não é sequer devidamente apresentada. As imagens de negros em livros didáticos aparecem quase sempre de forma negativa. A forma depreciativa com que se trata a população negra faz com que o estudante se afaste da escola e não se identifique com ela.

Folha - Mas a história dos negros brasileiros é também uma história de sofrimento. Querer apresentar outra versão não seria florear um fato histórico?
Petronilha -
Desde "Casa Grande e Senzala" [de Gilberto Freyre, publicado em 1933" essa história foi floreada. Nós nos referimos aos africanos que vieram para o Brasil apenas como escravos. Mas as pessoas não se escravizaram, elas foram escravizadas. Foram trazidas para cá, mas antes disso tinham uma história.
Há uma experiência interessante, na década de 80 na Bahia, de formação de professores de história da África pré-colonial. Há muitas coisas que a gente desconhece. Eu, pelo menos, nunca estudei na escola que havia reinos africanos, como o do Congo e do Zimbábue. Quando falamos de ruínas de antigas civilizações, falamos de Grécia e Roma.
Ignora-se que já no século 13 havia três grandes universidades islâmicas na região onde hoje está Mali [África subsaariana". Os negros também descendem de gente educada, com cultura. Outra coisa que não se fala é que os negros escravizados eram trazidos de regiões onde tinham experiência agrícola, ou seja, não eram mão-de-obra desqualificada. O que falta é conhecimento real da história. Quem não se orgulha da história de seus antepassados que trouxeram desenvolvimento?

Folha - O que o Conselho Nacional de Educação e o MEC podem fazer para atacar esse problema?
Petronilha -
A formação de profissionais que conheçam a história dos negros talvez seja uma política que o CNE possa vir a imprimir. É preciso encontrar esses estudos e colocá-los sob a forma de material didático.
Nosso objetivo é que todos tenham direito a ingressar nas escolas e a realizar esses estudos. Além da formação dos professores, estamos [na UFSCar" começando neste ano com um projeto de curso pré-vestibular. Nosso objetivo é que, além da preparação, ele receba informação que lhe dê segurança para prosseguir na vida universitária, sabendo lidar e combater discriminações, seguro da história de seu povo.

Folha - A história dos negros deveria ser incluída no currículo escolar apenas para trabalhar a auto-estima dessas crianças?
Petronilha -
A questão racial não é exclusiva dos negros. Ela é da população brasileira. Não adianta apoiar e fortalecer a identidade das crianças negras se a branca não repensar suas posições. Ninguém diz para o filho que ele deve discriminar o negro, mas a forma como se trata o empregado, as piadas, os ditados e outros gestos influem na educação.

Folha - A senhora é a favor das cotas para negros em universidades?
Petronilha -
Sou absolutamente a favor. O movimento negro costuma dizer que sempre existiram cotas no Brasil. Elas beneficiavam brancos e descendentes de europeus, que sempre tiveram posição garantida nas universidades.

Folha - A entrada de negros sem que seja pelo critério do mérito não é um golpe na auto-estima dos próprios estudantes que se beneficiariam das cotas?
Petronilha -
Ninguém está dizendo que eles ingressarão na universidade sem qualificação. O sistema de cotas que sugerimos é o que leve em conta a aprovação do estudante no vestibular. Em 95, fiz parte de um grupo que estudou a adoção desse sistema na USP (Universidade de São Paulo). As cotas que propusemos beneficiariam os estudantes que fossem aprovados no vestibular, mas que não conseguissem a classificação para uma vaga.


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