São Paulo, sábado, 25 de abril de 1998

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DIÁRIO DA FOME
"Não voltamos à cela"

HUMBERTO EDUARDO PAZ
especial para a Folha

Acabamos de receber a visita da equipe médica. Todos os dias passamos pelos mesmos exames: sangue, urina, pressão, temperatura e agora também eletrocardiogramas.
São tantos os cuidados e atenções que fico até envergonhado. Não somos artistas ou jogadores de futebol, gente que sempre está cercada da melhor assistência. Somos apenas antigos lutadores, que se recusam à indignidade de uma pena injusta.
Não estamos com as cordas vocais afetadas por representações dramáticas ou com o tornozelo contundido pela agressão de algum adversário mais violento: nossa vida se esvai porque é nossa única e voluntária arma para conquistarmos nossos direitos.
Minha companheira, Deni, uma bióloga mexicana que conheci há quase 20 anos, chegou ao Brasil na quarta-feira. Veio do aeroporto para a penitenciária.
Depois de esperá-la cumprimentar todos os outros companheiros, peguei-a pelas mãos e fomos ao meu quarto no ambulatório. Sentamos juntos na beirada da cama e esperei por suas perguntas. Sempre tenho a impressão de que Deni é capaz de ler meus pensamentos: deve ser o que se passa com quem fica junto, na mesma estrada, por tanto tempo.
Ela não dizia nada, acho que estava emocionada por me ver, junto com meus camaradas, em uma situação tão drástica. Tomei eu a iniciativa: "Deni, jamais voltaremos às celas onde passamos quase nove anos. Daqui, só sairemos para a liberdade ou para a morte."
Os olhos de Deni se encheram de lágrimas. E logo respondeu que, desde que tomou conhecimento da greve de fome, sempre soube que não poderia ser diferente. E que havia abandonado seu trabalho e vindo ao Brasil para estar ao meu lado.
O médico hoje me perguntou como podíamos, com mais de 40 anos e quase nove anos nos alimentando com comida de cadeia, estarmos suportando em tão bom estado físico e moral a greve de fome.
Depois de uma boa risada, a primeira resposta que me ocorreu foi falar dos eternos benefícios da carne e do vinho argentinos. Quando me pus sério, abri o coração: "Sabe o que se passa, doutor Paulo? Depois de muito tempo, não estamos mais esperando passivamente a decisão de um juiz ou de um presidente. Estamos lutando, e essa sensação ativa é uma vitamina insubstituível para os revolucionários."
O mensageiro que recolhe essas linhas talvez seja a última visita do dia.
Os demais companheiros voltaram a me escolher como seu porta-voz. Estão agora recolhidos a seus quartos. Sinto-me responsável pelo curso dessa batalha. E quero que todos saibam que estão diante de um grupo de homens e mulheres que a vida ensinou a jamais hesitar nas horas decisivas.



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