São Paulo, segunda, 25 de maio de 1998

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DOAÇÃO
Morte de recém-nascido sem cérebro, após 33 semanas de gestação, impossibilita transplante desejado pelos pais
Bebê anencéfalo morre sem doar órgãos

Lalo de Almeida/Folha Imagem
a empresária Maria Inês, que ontem deu à luz um bebê anencéfalo, por volta do quarto mês de gravidez


CLÁUDIA COLUCCI
da Redação

O sonho da empresária Maria Inês, 41, de doar os órgãos de seu bebê anencéfalo (sem cérebro) acabou às 6h de ontem. A menina Gabrielle nasceu prematura, com apenas 725 gramas, e sobreviveu 25 minutos.
Maria Inês estava na 33ª semana de gravidez. O tempo de gestação de um bebê normal varia de 38 a 40 semanas.
Segundo o obstetra Edmundo Bechara Patah, 56, houve amadurecimento precoce da placenta, além de um aumento de volume do líquido amniótico (substância em que o feto fica submerso dentro do útero da mãe) -sintoma muito comum nos casos de anencefalia. "O bebê ainda foi colocado num respirador artificial, mas não havia chance de sobreviver."
Segundo Patah, a idéia era encaminhar o bebê à UTI neonatal do Instituto da Criança, que pertence ao Hospital da Clínicas. Devido à prematuridade do bebê, isso não chegou a acontecer.
Maria Inês deve permanecer internada até amanhã. O seu estado de saúde é bom, mas, segundo o médico, ela ainda está muito abalada emocionalmente.
Ela e o marido, Valdir, resolveram doar o corpo do bebê para a Faculdade de Medicina da USP-SP para ajudar nos estudos sobre anencefalia.
"A sensação é de um imenso vazio. Achamos que esse sofrimento só terá valido a pena se a nossa experiência for aproveitada para alguma coisa. Espero que no futuro o país tenha estrutura para atender pais que sonham em dar sentido à vida de um bebê que não tem chance de viver", disse Valdir.
A opção por deixar nascer crianças anencéfalas, para realizar a doação de seus órgãos, tem sido adotada por países como o Canadá, a França e a Itália.
No Canadá, por exemplo, há programas de auxílio aos pais que levarem adiante a gravidez.
Luta
A luta de Maria Inês e Valdir começou em janeiro, quando souberam, por meio de uma ultra-sonografia, que o bebê era portador de uma anencefalia -malformação que levaria a criança à morte.
Inês decidiu que manteria a gravidez até o fim, na tentativa de doar os órgãos da criança. Na maioria dos casos de anencefalia, os órgãos são saudáveis e podem perfeitamente ser usados em transplantes.
A decisão, porém, esbarrou na legislação que trata da doação de órgãos no país. A lei não prevê a utilização de órgãos de uma criança anencéfala.
O casal procurou então os conselhos estadual e federal de medicina em busca de um parecer sobre o caso.
O CRM (Conselho Regional de Medicina) de São Paulo avaliou que não havia nenhum problema na retirada dos órgãos logo após o nascimento, mas a opinião do CFM (Conselho Federal de Medicina) foi diferente: era preciso esperar uma semana e só depois de detectada a morte cerebral é que a doação poderia acontecer.
Esse procedimento, usado no caso de crianças normais, foi criticado por várias autoridades médicas e jurídicas, porque inviabilizaria a doação -já que a maioria dos bebês anencéfalos morre logo após o nascimento.
Inconformados com a decisão, Maria Inês e Valdir entrariam hoje com uma medida cautelar para tentar garantir na Justiça o direito de doar os órgãos do bebê. Não deu tempo.



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