São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

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SEGURANÇA

Corpos e cenas de crimes são adulterados, contrariando a lei e prejudicando a obtenção de provas e laudos

PM paulista não preserva local de homicídio

EDUARDO ATHAYDE
ANDRÉ CARAMANTE DO "AGORA"

Quando a missão é preservar locais de homicídio, a polícia paulista erra e, por consequência, o trabalho de obtenção de provas para a elucidação das mortes é prejudicado.
Os equívocos cometidos por policiais de São Paulo foram constatados pela reportagem depois do acompanhamento de dez casos de assassinatos ocorridos na capital entre os dias 15 e 22 deste mês. Em todos eles, as preservações dos locais foram extremamente alteradas.
Segundo o promotor de Justiça e secretário-executivo do 1º Tribunal de Júri do Ministério Público, Norton Geraldo Rodrigues da Silva, a falta de preservação do local de um homicídio atrapalha consideravelmente a identificação do autor do crime.
"Durante um julgamento, na grande maioria das vezes os jurados e o juiz dão mais importância a provas materiais do que a testemunhais", revelou o promotor.
De acordo com o Código Penal Brasileiro, a responsabilidade da preservação da área de um homicídio é competência exclusiva da Polícia Militar (PM).
Cabe aos policiais militares, por exemplo, a obrigação de colocar fitas para impedir o acesso de familiares da vítima, amigos, curiosos e também da imprensa à cena do crime.
Em apenas um caso investigado pela reportagem, o da chacina do último dia 16, quando três homens foram mortos em um bar no Campo Limpo (zona sul da capital), a PM utilizou o recurso do isolamento do local com fitas.
No entanto, policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), uma tropa de elite da PM paulista, andaram no estabelecimento comercial, pisaram em poças de sangue e baixaram as portas de aço do local, onde poderiam ter sido deixadas pistas dos criminosos.
Porém nos outros nove casos, os policiais militares responsáveis pela preservação alegaram não dispor das fitas.
Por lei, os policiais não podem tocar no corpo, na carteira, no bolso ou em qualquer objeto que faça parte do cenário do crime.
Em dois casos, um na favela Heliópolis e outro no Parque Santo Antônio, ambos na zona sul da capital, a reportagem constatou PMs mexendo nos corpos. Em outro caso, uma perita tropeçou no corpo de um jovem antes que ele fosse periciado.

Adulteração Na prática, o que acontece é que os PMs tocam propositalmente no corpo da vítima por curiosidade ou para a constatação de como a pessoa foi morta, mexem na carteira e nos bolsos do morto à procura de documentos, e, em situações mais extremas, chegam a modificar a posição em que a vítima morreu.
Um exemplo desse tipo de adulteração de corpo e local de homicídio aconteceu no dia 19 passado, por volta das 21h45, quando PMs reviraram os bolsos, puxaram a camiseta e retiraram a carteira do bolso da calça de Mário Celso Oliveira da Rocha, 26, morto a tiros e queimado em seguida em Heliópolis (zona sul da capital).
Tocar ou mudar a posição do corpo de uma vítima de homicídio também é outro erro frequentemente cometido por PMs ou parentes dos mortos.
Uma das consequências dessa atitude é a impossibilidade da perícia de saber com precisão quando a pessoa foi assassinada.
"Nas primeiras 16 horas, o sangue da vítima tende a coagular na parte mais baixa do corpo. Dependendo da quantidade de sangue coagulado sabe-se há quanto tempo a pessoa morreu. Agora, se mexem no cadáver, a posição do sangue muda e tudo fica comprometido", afirma George Samuel Sanguinetti Fellows, médico-legista e professor de medicina legal da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
O único autorizado por lei a mexer no corpo é o perito criminal, que é integrante do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), o órgão da Polícia Civil responsável pela investigação de crimes contra a vida cuja autoria é desconhecida.
Ao deixar de isolar o local onde a pessoa foi assassinada, a PM contribui para que impressões digitais, pegadas e outras pistas possivelmente deixadas pelo assassino desapareçam ou sejam radicalmente adulteradas.
"É extremamente importante isolar a área em volta do corpo para que as provas materiais sejam mantidas intactas. É primordial que a faixa de isolamento seja colocada, em qualquer local ou caso", afirma Sanguinetti.
E não é só o isolamento que mantém a cena do crime preservada. Os especialistas consultados pela reportagem foram unânimes ao afirmar que o simples fato de cobrir o corpo com qualquer material, seja jornal, coberta ou lençol, já faz com que provas sejam substancialmente modificadas.
"A tinta do jornal pode mudar a tonalidade da pele da vítima ou encobrir marcas deixadas no corpo", revelou o médico-legista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Nelson Massini.
Dos dez casos de homicídios acompanhados pela reportagem neste mês, oito tinham sido adulterados pela colocação de panos ou jornais sobre as vítimas, sempre com autorização dos PMs -que, pela lei, deveriam impedir que isso acontecesse.


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