São Paulo, sexta, 25 de setembro de 1998

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SAÚDE MENTAL
Hospital psiquiátrico de SP, o maior do país, será investigado
ONG quer apuração de mortes no Juqueri

AURELIANO BIANCARELLI
da Reportagem Local

Uma investigação oficial poderá desenterrar a história dos cerca de 50 mil mortos do Juqueri, o maior hospital psiquiátrico do país. Um suposto cemitério clandestino esconderia parte desses corpos.
O hospital, que fica em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, está comemorando cem anos e já abrigou oficialmente 124.340 pacientes.
Dois livros com o nomes de 12.500 pacientes mortos entre 1965 e 1989 foram entregues ontem à noite a um representante da Procuradoria Geral da Justiça. Desses mortos, 7.600 foram enterrados dentro do próprio hospital.
A ONG Associação SOS Saúde Mental e várias entidades ligadas à saúde e à psiquiatria querem que o Ministério Público investigue o que aconteceu com os mortos do Juqueri. A atual direção da instituição diz que há 5.201 sepulturas no cemitério oficial do hospital, mas não sabe dizer quantos corpos podem estar enterrados ali.
A diretora Maria Tereza Gianerini Freire, que assumiu o Juqueri em 95, diz que o hospital e os documentos sempre estiveram abertos. "Também estamos interessados em descobrir esse passado."
A história dos livros dos mortos do Juqueri, de capa preta e verde, é tão cheia de mistérios quanto a existência do cemitério. Os livros teriam sido entregues anonimamente ainda em 1992 aos membros de uma comissão de representação parlamentar da Assembléia Legislativa. A comissão, presidida pelo deputado Roberto Gouveia (PT), investigava o "uso dos hospitais psiquiátricos pelo aparato da ditadura". "O motorista que foi buscar os livros foi perseguido e pessoas da comissão passaram a receber telefonemas ameaçadores", diz a psicóloga Cristina Lopes, da SOS Saúde Mental. Outros livros teriam sumido num suposto incêndio criminoso ocorrido no hospital.
Com base nos dois livros recebidos, a comissão parlamentar estimou que 61 mil pessoas teriam morrido dentro do hospital de 1898, quando foi inaugurado, até 1991. Desse total, cerca de 30 mil teriam sido enterrados no cemitério do próprio Juqueri. "Informações do próprio hospital, recolhidas na época, falavam em 33.977 mortos enterrados ali", diz o deputado Gouveia.
Nesse meio, haveria cerca de 7.000 adolescentes, crianças e natimortos, além de um número grande de membros amputados, como pernas e braços, diz Cristina Lopes. "O que nos espanta é a grande quantidade de crianças enterradas e a razão de tantas amputações", afirma a psicóloga. Quase todas as crianças seriam filhas de pacientes do próprio hospital.
Segundo membros da SOS Saúde Mental, funcionários antigos relataram a prática de enterrar um corpo sobre ossadas antigas, com uma superposição de até cinco cadáveres numa mesma sepultura.
Outra constatação é a presença ali de corpos de pacientes vindos de outras instituições como o hospital psiquiátrico Pinel, da zona norte de São Paulo. "Os corpos deveriam estar em cemitério comum, e não enviados para o Juqueri", afirma Cristina.

Punição
Outro documento entregue ontem à noite ao Ministério Público é uma ordem de serviço com data de 2 de agosto de 1968 assinada pelo chefe de disciplina. A ordem determina que "todo interno encontrado com qualquer tipo de arma, improvisada ou não", seja recolhido à cela forte e aplicado "uma ampola de escopolamina de 0,2 mg". O paciente deveria saber que se tratava de "disciplina e não terapêutica". Segundo Cristina, a escopolamina é uma droga que provoca sensações de morte iminente e foi usada pelos nazistas nos campos de concentração. "É a prova de que a tortura era uma prática comum", afirma Gouveia,
As investigações da comissão de 1991/93 levaram à aprovação do "Código da Saúde", em 1995, que trouxe os princípios da reforma psiquiátrica no Estado. A comissão de reforma psiquiátrica, no entanto, até hoje não foi criada.



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